Socialismo de mercado

wired

Quando eu era criança o mundo comunista ficava atrás de uma Cortina de Ferro. Hoje, se formos acreditar no texto polêmico publicado este mês pela sempre provocativa revista Wired, o novo socialismo mora dentro de um Portão Dourado: o Golden Gate, na entrada da baía de San Francisco, às margens da qual cresceu o Vale do Silício, onde ficam as sedes do Google, do Yahoo, do Facebook e de várias outras grandes empresas de internet.

O texto, chamado “The New Socialism”, foi escrito pelo grande Kevin Kelly, editor fundador da Wired nos anos 90 e membro do time que fez o fantástico Whole Earth Catalogue, a revista de contracultura dos anos 60 que inspirou 9 entre 10 visionários do Vale do Silício, inclusive Steve Jobs.

A tese de Kelly, que vai dar o que falar, é a de que o mundo está sendo invadido por um novo tipo de socialismo – o socialismo digital, fundado sobre os pilares do compartilhamento, da coperação, da colaboração e do coletivismo. E que esse novo socialismo – prepare-se – segue fielmente as regras do mercado.

Enquanto o socialismo da velha guarda era um braço do estado, o socialismo digital é socialismo sem o estado. Esse novo tipo de socialismo opera no reino da cultura e da economia, em vez de no governo – por enquanto.

Kelly reconhece que é arriscado usar a palavra “socialismo”, que é tão carregada, tão associada a ditaduras e a intolerância. Mas ele diz que não há outra palavra além dessa para designar uma série de tecnologias que derivam seu poder das interações sociais.

Quando massas de pessoas que são proprietárias dos meios de produção trabalham por um bem comum e dividem entre si os produtos desse trabalho, quando eles contribuem com trabalho sem remuneração e têm direito aos frutos do trabalho sem custo, não é absurdo chamar isso de “socialismo”.

Ele está falando de esforços coletivos como o Linux e a Wikipedia, coletivizações de bens como o Creative Commons, esforços de coperação como o Flickr e o youtube. E do potencial tremendo de essas ferramentas começarem a efetivamente mudar a sociedade. Já há sites que fazem empréstimos colaborativos – o Kiva permite que qualquer pessoa do mundo possa fazer um micro-empréstimo a alguém que precise, sem intermediários, sem bancos, com transparência, clareza sobre os riscos, de um jeito vantajoso para os dois. Há também o PatientsLikeMe, no qual pacientes  compartilham suas fichas médicas e aprendem mais sobre suas doenças e seus tratamentos, tirando o monopólio da saúde das mãos de hospitais, governos e planos de saúde. E, claro, o MyBO, site colaborativo que ajudou a colocar de pé a campanha de Barack Obama e elegê-lo presidente e que agora está ajudando-o a governar.

O interessante na visão de Kelly é que ele acha que o novo socialismo não tem nada de ideológico. Na verdade, ele é bem prático.

Uma pesquisa com 2.784 desenvolvedores de software livre descobriu que a principal motivação para eles trabalharem colaborativamente é “desenvolver novas habilidades”.

Ou seja: o que os novos socialistas querem é se tornar profissionais melhores, inclusive para competir melhor no mercado de trabalho.

E eles trabalham duro para isso: calcula-se que a última versão do software colaborativo Fedora Linux 9 é o fruto de 60.000 anos-homem – a totalidade do trabalho de 60.000 homens ao longo de um ano. Sem remuneração.

Ohloh, uma empresa que se especializou no setor de software livre, apurou que há hoje mais ou menos 250.000 pessoas no mundo trabalhando em 275.000 projetos, um número impressionante. Isso é quase o tamanho da General Motors. É um número bem grande de gente trabalhando de graça, ainda que seja em meio período. Imagine se todos os funcionários da GM parassem de receber salários e ainda assim continuassem produzindo carros.

Claro que o texto de Kelly conseguiu o feito de irritar profundamente direitistas e esquerdistas: uns pelo uso da palavra “socialismo”, outros pelos elogios rasgados ao poder do mercado. Mas esse pessoal se irrita muito fácil mesmo…

18 comentários
  1. Rogério O. Soares disse:

    E X C E L E N T E Tópico Denis!
    Ironicamente este “socialismo” digital não passa do firewall de governos como da China. Todos os possuidores de direito autoral precisam abrir ao menos parte de seu “PIB” aos desenvolvedores. Complementaria este texto com o exemplo de consoles de jogos como Play Station que permite ao usuário criar e compartilhar com o mundo novas fases de jogos, é tanta coisa sendo feita por anônimos desinteressados financeiramente que enxergo um mundo onde os mendigos poderão acessar sua conta de internet em um post de luz.
    Amo Steve Jobs!
    Abraço aos leitores!

    P.S.: Desculpa dizer mas aquela senhora não me inspira lá muita confiança em devolver dinheiro emprestado :mrgreen:

  2. Rogério O. Soares disse:

    Pessoal entrem no Kiva, muito muito interessante!

  3. Jay Jay, Nigeria disse:

    Sei que é uma síntese exagerada, mas a grosso modo e teoricamente, o comunismo é a estatização de todos os meios de produção para o benefício de todos. Já o socialismo é o uso dos meios de produção para o benefício de todos, não implicando necessariamente que esses meios de produção sejam estatizados.
    A idéia de Kevin Kelly é uma idéia socialista claro, uma vez que incentiva que os meios de comunicação, não necessariamente os de produção sejam utilizados para o benefício de todos, para o bem social com a diferença de que esse trabalho para o bem social seja composto e impulsionado pelo trabalho voluntário e não por regras impostas por uma administração central.
    É um socialismo horizontal e não vertical. Das massas, para as massas e pelas massas.
    Que essa idéia irrita a esquerda e a direita é mais que certeza, espere só pelos comentários.

  4. Joabe S. Arruda disse:

    Socialismo? Argh.

  5. denis rb disse:

    Jay Jay, no caso do Linux, por exemplo, até se pode sim falar que a comunidade detem a propriedade dos meios de produção – os computadores. É claro que não há como aplicar essa lógica integralmente à todas as esferas da sociedade – não consigo imaginar a construção colaborativa de uma ponte, por exemplo. Mas já é uma grande novidade.

  6. Luan Honra disse:

    Parabéns Denis,

    Esse tema é crescente e vem abrindo espaço em todos os setores mesmo. Eu ainda gostaria de citar o extraordinário livemocha.com, um site onde as pessoas do mundo todo ensinam umas às outras os seus idiomas e tudo de graça, sem nenhuma contraprestação.

  7. Jay Jay, Nigeria disse:

    Oi Denis,
    Boa a idéia da ponte voluntária. Isso me fez lembrar de um sistema utilizado por alguns povos nigerianos, principalmente entre os Ibos e os Ikas aonde o sistema de administraçao local é bem horizontal, muito parecido com os Chiapas do México.

    Funciona assim: todos as obras para o benefício da comunidade é realizado por trabalho voluntário, construçao de prefeituras, tribunais, saloes nobres, escolas e até estradas. O financiamento normalmente é obtido pela contribuiçao mensal voluntária feita pelo chefe de cada família residente na comunidade. Quando é época de plantio, os agricultores fazem rotatividade, por exemplo, uma semana todos ajudam X no plantio, noutra semana ajudam Y. Os agricultores mais velhos teem preferência para receberem a ajuda comunitária. Quando necessário também ajudam as viúvas a construirem as suas casas. Interessante também é o sistema de financiarem jovens da comunidade a irem para universidades nos grandes centros. Esse financiamento pode ou nao ser re-embolsado, normalmente é re-embolsado para gerar mais fundos para os próximos, mas até o re-embolso é voluntário.

    Infelizmente esse sistema aos poucos está morrendo atropelado pelo sistema “moderno” entretanto nas vilas em que as tradiçoes ainda sao fortes, ainda funciona assim. Digo isso como testemunha e participante: a minha comunidade de Ogbeisere of Agbor Kingdom e todas as outras comunidades vizainhas ainda utilizam esse sistema natural de socialismo.

    Abraços a todos.

  8. Luiz Carlos Pôrto disse:

    Excelente, Denis. O impacto de todo este conceito “socialista” de produção só será realmente conhecido daqui há alguns anos, mas dá para imaginar que a sociedade nunca mais será a mesma.

    Sobre trabalho cooperativo e sustentabilidade, veja que belo exemplo na Inglaterra. Ainda teremos algo assim no Brasil?

    http://www.silvaporto.com.br/blog/?p=209

  9. Márcio disse:

    Muito boa essa discussão!! Essas tentativas de mescla de princípios filósóficos e práticas de diferentes tradições quase sempre acaba em coisas boas. Pensemos bem, porque o Iluminismo e o humanos nascem na Europa? Justamante pelo fato de lá ser um lugar onde populações de culturas, religiões e formas de organização diferentes dividiam um espaço pequeno e estavam em constante contato – conclusão: tiveram que aprender a solidificar uma unidade na pluralidade. Isso pode muito bem ser visto hoje na internet, diminuição das distâncias e troca de experiências que podem trazer uita coisa boa pra humanidade. Quem disse que a globalização não tem o seu lado bom? Olha esse caso do Jay Jay, poucos…

  10. Márcio disse:

    poucos de nós saberíamos que isso ainda hoje existe (ou até existiu) na Terra se não fosse esse encurtamento dos contatos, trocas e tudo isso de que fala o post do Denis. Nesse caso, do socialismo de mercado, interessante lembrar que, não necessariamente, a coisa se limita aí, pois as possibilidades são infinitas e, se gozarmos de liberdade e de uma economia mais democratizada (que a própria lógica caótica da rede pode favorecer), muita coisa boa pode surgir. Mais do que socialismo, diria que essas questões que o texto considera, detém uma lógica muito próxima dos anarquistas mutualistas (olhem a Wikipedia), e dos liberais radicais norte-americanos. Enfim uma chama de esperança!

  11. Marina disse:

    Denis, muito interessante essa visão. De fato, já existem muitos teóricos promovendo a nova sociedade como fator de coesão e mudança, vide os exemplos virtuais mencionados por você, e muitos outros fora da “rede”: ONGs, comunidades que resgatam a cultura como instrumentos de legitimação e inclusão social, etc. Mas é importante ressaltar que muitas vezes isso é um discurso muito bonito, que não é interessante para ninguém – exceto para o setor privado. O potencial de melhoria da qualidade de vida que a organização da sociedade civil permite (pela internet ou fora dela) é real, e deve ser explorado. Mas esse novo movimento esquerdista pode estar promovendo (continua)

  12. Marina disse:

    (continua) a viabilização de políticas neoliberais, e o que era responsabilidade do Estado passa a ser do povo. Claro que há práticas comprovadamente eficientes e que merecem ser aplaudidas, mas há tb. mta retórica e criação de novos “serviços” e “produtos culturais” que, de fato, só trazem idéia de democracia (uma democracia pautada pelo consumo, falácia total) que convém ao setor privado, os detentores do novo capital cultural/social que tanto se promove… enfim, concluo: é legal tudo isso; mas há que se atentar para o discurso vazio de práticas realmente eficientes para a sociedade.

  13. Tyrso disse:

    Eu prefiro chamar esse movimento da Web 2.0 de novo cooperativismo, onde além de haver cooperação entre os trabalhadores, há também colaboração entre os clientes.
    Acho que chamar de socialismo é um pouco cedo demais …

  14. paula juchem disse:

    ótimo esse texto! Tenho pensando mesmo que o capitalismo é um projeto falido e que um novo socialismo, um socialismo moderno esta por vir. é a nossa geração que tem essa tarefa na mão, como disse hoje uma amiga numa conversa sobre a infância no Brasil … precisa ter “paciência histórica ” vai ver que é isso mesmo e que a retomada de um estilo de vida mais inteligente, preservação do planeta, uma melhor distribuição de renda, quem sabe se tudo faz parte de um grande ciclo de gerações apòs geração … abraço pra voce Denis.

  15. Pedro disse:

    Dênis, talvez você tenha utilizado um título não muito adequado para o texto. Se eu não me engano, o socialismo de mercado é o nome que especialistas têm dado para o sistema econômico chinês. E, como devemos concordar, esse novo tipo de socialismo ao qual o texto se refere passa longe do Chinês (que é mais um capitalismo mascarado por uma ditadura). Socialismo digital deve soar melhor, especialmente porque é o oposto do socialismo chinês, pois é estruturado de baixo pra cima e necessita da democracia como pré-requisito para sua existência.

  16. Pedro disse:

    Marina, concordo que muitas vezes isso foi demagogia. Mas os exemplos citados, são indícios fortes que o falso-discurso está caindo cada vez mais e o capitalismo (jogo que se joga sozinho) está perdendo as bases. Temos muitas ONGs que trabalham de verdade e que já conseguem entrar no sistema e modificá-lo – como o Greenpeace fez no caso da carne da Amazônia. Há ainda o exemplo do Superflex, sobre o qual o Denis já escreveu aqui. MyBO nem se fala e o movimento software livre talvez seja o exemplo mais concreto de aliança entre cooperativismo e mercado…

  17. Pedro disse:

    …O Google está nessa, a DELL está, o Facebook está, o Yahoo está. A verdade é que os avanços da comunicação nos últimos tempos nos permitiu ser aquilo que fomos biologicamente fadados a ser: seres coletivistas.

  18. Rubens Paes disse:

    Putz!!!

    Temos uma discussão interessantíssima aqui.
    Denis, você é meu herói!

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