Copas do Mundo são rituais contemporâneos de simulação de guerra. Por um mês, a nação e boa parte do mundo reduzem o foco em seus afazeres habituais e se concentram em acompanhar pela televisão o espetáculo dos países medindo forças uns com os outros. (Por esse prisma, não é difícil entender porque os EUA não se interessam: para que os americanos iriam perder tempo com simulações de guerra?) Dessa forma, as copas saciam nossa necessidade evolutivamente construída de fazer parte de um bando, de sermos movidos por algo maior que nós (a pátria), de competir.
Por um mês, boa parte de nós deixa um pouquinho de lado os problemas cotidianos do trabalho e da família e coloca a atenção em 23 atletas e um técnico. Para ficarmos a par do que eles fazem nossa sociedade mobiliza todo o seu sistema de produção de informação. Milhares de repórteres, fotógrafos, cinegrafistas, blogueiros, comentaristas, escritores, narradores, cronistas, chargistas, artistas, radialistas são enviados para a sede da copa para conectar-nos a ela e saciar nosso desejo de sentirmos que fazemos parte desse momento épico. Tradicionalmente, é a indústria da mídia que comanda esse esforço, financiada por centenas de grandes patrocinadores, cujas empresas somadas respondem pela quase totalidade do PIB brasileiro.
Por conta de tanta gente mobilizada, Copas do Mundo costumam gerar toneladas de conteúdo e, de tempos em tempos, nos deixam de herança algum produto cultural inesquecível. Um exemplo que me vem à memória é a série de charges de página inteira que o cartunista Henfil fez sobre cada jogo brasileiro da Copa de 1970 para a revista Placar [alguém tem um link disso para me passar?]. Outro é a capa poética e triste que o Jornal da Tarde paulistano publicou logo após a derrota em 1982. Ou, ainda, os divertidos esquetes humorísticos estrelando Araquém, o Gol Man, que a TV Globo criou em 1986, anunciando tempos menos chatos no Brasil.
Na minha opinião, a copa de 2010 também deixou um desses produtos culturais memoráveis. Mas, diferentemente dos outros três exemplos que citei, não foi uma grande empresa de mídia a responsável por ele. Foi um publicitário e roteirista de Juiz de Fora chamado Pablo Peixoto, autor solitário da série Dunga em Um Dia de Fúria, que teve quatro episódios disponibilizados de graça no Youtube e assistidos por milhões de pessoas.
O que Pablo fez foi simplesmente pegar cenas do filme Um Dia de Fúria, o clássico policial de 1993 com Michael Douglas, e dublar os personagens, transformando-os nos personagens da Copa – Dunga, Robinho, o holandês Sneijder, Fátima Bernardes, Tadeu Schmidt, Alex Escobar, Valdívia do Chile e Crstiano Rnaldo, sem falar nas participações especiais do Capitão Nascimento, Mick Jagger e Fernando Vanucci, inteiramente bêbado. É engraçadíssimo e muito politicamente incorreto.
Mas atenção, se você se incomoda com palavrões, POR FAVOR NÃO ASSISTA.
httpv://www.youtube.com/watch?v=NKMbpLzldws
Este primeiro episódio foi ao ar logo após a polêmica do técnico Dunga com a Rede Globo a respeito do acesso exclusivo que a emissora tradicionalmente tem à Seleção. Dunga desajeitadamente se rebelou contra esse privilégio, gerando um bate-boca que começou na TV e se estendeu Twitter afora pela internet.
Ao final do imbroglio, a impressão era de que todo mundo saiu perdendo. A Globo tomou um “cala-boca” do público e percebeu que os tempos mudaram. A CBF saiu mal na foto, por desrespeitar a autoridade do técnico. E Dunga se revelou desequilibrado e ressentido, o que acirrou sua agressividade. Na minha opinião, essa irritação se espalhou pelo time e está intimamente ligada ao clima tenso que resultou na derrota para a Holanda. Perdemos todos.
Depois vieram mais três episódios do filme de Pablo Peixoto: a piada de português após o empate chocho com Portugal, a catarse violenta após a quase goleada sobre o Chile e o duelo trágico no confronto final contra a Holanda. Mantiveram o mesmo espírito anárquico, a linguagem chocantemente obscena e o humor que não faz nenhuma concessão ao politicamente correto. (DE NOVO: POR FAVOR NÃO ASSISTA se você se incomoda com palavrões.)
Hoje, após os três dias de luto desde a derrota brasileira, a lembrança da Copa já começa a se cristalizar na memória do país e entrar para a história. Algumas coisas vão ficando claras:
1. Dunga, pelo jeito, não ficou para a história como vilão. Ele é um herói trágico, um anti-herói, da mesma estirpe de William Foster, que Michael Douglas interpretou em Um Dia de Fúria. Um homem obediente, na essência bom, mas desajustado, furioso, deslocado no mundo. Uma pessoa que teve mais azar do que sorte, mas que talvez deva muito de seu azar à raiva que carrega.
2. Em Um Dia de Fúria, William Foster é um ex-engenheiro de defesa do complexo industrial-militar americano que, depois de dedicar décadas a construir o sistema de matar de seu país, é descartado, demitido. Os ex-empregadores de Foster não aparecem no filme. Da mesma maneira, a CBF não aparece no filminho de Pablo Peixoto no Youtube. Mas acho que há um paralelo entre os dois personagens.
3. A Globo, as outras grande empresas de mídia e seus patrocinadores, que há décadas decidem o que o Brasil pensa sobre as coisas, precisam se acostumar com um papel novo, em que não há mais privilégios e um roteirista de Juiz de Fora é capaz de criar uma versão mais completa e interessante da história do que um editorial com tom embargado em horário nobre.
Eu preferia ganhar a Copa, claro. Mas derrotas são mais reveladoras.