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Arquivo mensal: março 2010

Por que é que a discussão sobre mudanças climáticas hoje em dia é tão absurdamente polarizada? Por que é que o mundo parece dividido entre aqueles que acreditam nas mudanças climáticas causadas pelo homem e os que definitivamente não acreditam, e uns parecem ter certeza de que os outros são picaretas enganadores mal intencionados?

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A revista The Economist publicou semana passada uma reportagem excelente, que sumariza a discussão científica sobre o assunto, e que recomendo muitíssimo a quem quer ir além da polêmica e realmente entender o que está acontecendo. Um dos achados da revista foi perceber que a polarização é consequência do fato de que há dois modos de olhar para a questão. Há quem ache que a ciência do clima é um castelo de cartas, e há quem ache que é um quebra-cabeças. Estes últimos acreditam que os cientistas estão lentamente adicionando peças que vão formando uma imagem. Eventualmente, uma ou outra peça não encaixa, mas o jeito de lidar com isso é ter paciência e testar outra peça, e outra, e outra. No final, a fotografia vai aparecer – esses são os “aquecimentistas”. Já os outros, que acham que estamos empilhando cartas, acreditam que, se uma delas que esteja na base da pirâmide se revelar uma fraude, todas vão despencar. Esses são os “negacionistas”.

Nos últimos meses, os negacionistas estiveram em polvorosa. Uma série de denúncias mostrou que os cientistas do IPCC andaram dando mancadas: negaram-se a compartilhar informações com adversários, utilizaram dados suspeitos, revelaram-se intolerantes e nem sempre confiáveis. Para os negacionistas – inclusive aqueles que frequentam a área de comentários deste blog – o castelo desmoronou. Como a teoria das mudanças climáticas está apoiada em alguns dados ruins, ela desabou.

Acontece que os negacionistas estão enganados: a ciência do clima não é um castelo de cartas. Ela é um quebra-cabeças.

Uma teoria é um modelo segundo o qual uma coisa funciona. Dados são observações do mundo real. Teorias se apóiam em dados. Se você fizer uma teoria lindona, mas, na hora de observar o mundo, os dados não baterem com ela, sua teoria cai e precisamos encontrar outra. No geral, dados são simples e teorias são complexas. Dados costumam ser claros, objetivos, precisos, podem ser expressos em números. Teorias tendem a ser subjetivas, especulativas, argumentativas.

Acontece que, no caso das mudanças climáticas, é o contrário: a teoria é muito mais simples que os dados. É por isso que tanta gente tem dificuldade de entender o assunto e entra na armadilha do castelo de cartas.

A teoria por trás do aquecimento global é bastante simples. Não há polêmica nenhuma sobre ela. Sua base está nas leis da termodinâmica, formuladas no século 17. A primeira dessas leis é o princípio da conservação da energia – ela diz que a energia do Universo é constante. Por essa lei, a temperatura da Terra se manterá constante desde que a quantidade de energia que entra (os raios do sol) seja igual à quantidade que sai (o calor que escapa da atmosfera). Sabe-se também que alguns gases absorvem calor – entre eles o gás carbônico – e portanto diminuem a perda de calor da atmosfera. E ninguém tem dúvidas de que a humanidade está aumentando muito a concentração desses gases – nossas melhores medições mostram que a concentração, que foi constante por 10.000 anos, tende a dobrar de 280 ppm (partes por milhão) para 560 ppm entre 1750 e 2070 (hoje a concentração é de 387 ppm). Ou seja, a teoria do aquecimento global é tão simples que pode ser comprovada usando-se apenas ciência que qualquer estudante do segundo grau conhece.

Já os dados… Os dados são complicadíssimos. Medir a temperatura de um planeta não é tão simples quanto enfiar um termômetro debaixo do braço (até porque planetas não têm braços). Há um milhão de fatores atrapalhando a precisão das medições: nuvens, fenômenos naturais cíclicos, diferenças nos critérios de medição, influências de microclimas, mudanças na paisagem da Terra ao longo dos tempos (cidades são mais quentes que florestas). Precisamos nos basear em dados incertos, fazer inferências baseadas em anéis de crescimento de árvores e gelo soterrado nos polos. Isso gera um número astronômico de incertezas. Aí pegamos essas incertezas todas e jogamos em um computador, e o computador devolve um número. É com esse número que precisamos trabalhar. É, portanto, um número tão escorregadio quanto pista de esqui.

Hoje, o melhor número que conseguimos é o seguinte: no século 21, a temperatura da Terra vai subir entre 1,1 e 6,4 graus por causas humanas. Se subir 1,1, provavelmente teremos um pequeno aumento nos furacões, nas tempestades, nas secas e nas extinções, mas não é o fim do mundo. A vida continua mais ou menos do jeito que tem sido. Se subir 6,4, os efeitos especiais de Hollywood vão ficar no chinelo na comparação com as catástrofes que vão acontecer no mundo real. Um aumento de 2 graus é normalmente visto como a fronteira entre a normalidade relativa e a tragédia.

Claro que “entre 1,1 e 6,4” é uma margem desgraçada de grande. É um nível de incerteza gigante e desconfortável. Como diz a Economist, “os céticos estão certos ao dizerem que as incertezas dominam a ciência do clima. Mas eles estão errados ao afirmarem que essas incertezas justificam a inação”. Se analisarmos estatisticamente os números do IPCC, veremos que há uma chance em dez de que não haja razão para drama. Suponha que o IPCC esteja mesmo superestimando os perigos, numa razão de 5 vezes. Ainda assim, a chance de estarmos rumando para o desastre seria de 50%. Imagine que você soubesse que seu carro tem 50% de chances de ser roubado. Você faria seguro? (Detalhe: o seguro é relativamente barato.)

Este gráfico representa a variação de temperatura na Terra no último século e meio. Ele combina várias fontes e tem um viés de alta evidente. Acrescentei-o ao post em resposta a alguns comentários que afirmam que a temperatura da Terra está baixando.

Este gráfico representa a variação de temperatura na Terra no último século e meio. Ele combina várias fontes – HadCRUT3 é o programa do Centro Hadley e Universidade de East Anglia, NCDC é da Administração Nacional de Oceanos e Atmosfera dos EUA e GISS é o programa de monitoramento do clima da Nasa. O viés de alta é evidente. Acrescentei-o ao post em resposta a um comentário que afirma que a temperatura da Terra está baixando – comentei-o no dia 30/3 às 7:23 PM. Fonte: Organização Meteorológica Mundial.

Não sou um sujeito muito muito dado à religião. Vivo minha vida aqui mesmo no Planeta Terra, sem Deus ou alma, sem pecado ou sacerdote. Tem dias, confesso, em que olho para quem tem religião com alguma inveja. Inveja da sensação de paz que a certeza da imortalidade da alma traz. Inveja dos dados que vejo em pesquisas científicas: religiosos sofrem estatisticamente menos de depressão, são no geral mais satisfeitos com a vida, mais felizes. Mas não ter religião é parte do que sou, e uma parte que eu não pretendo mudar.

Tenho um baita respeito por gente religiosa. Respeito os católicos – como minha mãe, que foi aluna de escola de freira. Respeito os judeus – como meu pai, filho de poloneses que escaparam a tempo do Holocausto. (Quando me tiveram, os dois concordaram em não me dar religião, para não terem que brigar por minha alma e me darem a chance de escolher.)

E respeito os daimistas.

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O Santo Daime é uma religião mestiça e centenária, fruto do encontro de comunidades de trabalhadores cristãos pobres que emigraram para a Amazônia com índios amazônicos que consumiam um chá de propriedades enteógenas chamado ayahuasca. “Enteógeno” significa “aquele que provoca a manifestação interior do divino”. Para gente cética como eu, significa que o chá ativa a região do cérebro responsável por uma experiência mística. Em outras palavras: o chá faz ver Deus. O chá faz o cérebro funcionar da mesma maneira que, por exemplo, o cérebro de São Francisco de Assis funcionou no momento em que ele conversou com o Cristo na cruz.

Os daimistas acreditam que o chá liga-os com a essência divina da Terra e com os espíritos. Há quem não acredite nisso. Até aí, há quem não acredite que um sujeito possa ser crucificado e depois ressuscitar, ou que uma mulher possa conceber uma criança sem manter relações sexuais com um homem. Há quem não acredite que Deus escolheu um povo e que escreveu na pedra as leis para esse povo seguir.

Eu, que sou cético, pessoalmente não acredito em nenhuma dessas coisas.

Mas acredito no que está escrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem: “todo homem tem o direito de liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, incluindo o direito de mudar de religião e de “manifestar sua crença em ensinamentos, adoração e observação”. Acredito em Thomas Jefferson, um cristão, que disse que, uma vez que Deus dotou a mente humana de liberdade, qualquer tentativa de influenciar essa mente com punições ou proibições serve apenas para produzir hipocrisia e maldade.

E acredito que, se o Brasil proibisse a ingestão do chá do Santo Daime, estaria se colocando ao lado do Irã, da Arábia Saudita, do Paquistão, da China, do Vietnã e de outros países que impõem limites à liberdade religiosa. Permitir o Santo Daime dentro do contexto de uma religião é agir como age qualquer democracia civilizada – os EUA, por exemplo, tem leis semelhantes para regular o consumo do peyote, um cacto enteógeno adorado pelos índios do sudoeste do país.

Proibir o chá seria também criar mais um mercado ilegal que seria então dominado por traficantes. Óbvio: os daimistas convictos não parariam de consumir o chá e iriam para a ilegalidade. O que faríamos então? Mandaríamos tropas para a floresta, para prender índios? É isso que deveria ter acontecido com o Glauco? Ter sido preso como traficante? Não me parece que isso pudesse ter salvo sua vida.

Tornar substâncias ilegais não acaba com a violência. Pelo contrário: aumenta, como se pode constatar pelo imenso número de homicídios ligados ao tráfico que acontece todos os dias no Brasil. Em vez de proibir, deveríamos controlar. O chá do Santo Daime realmente é muito perigoso para pessoas com tendências a surtos psicóticos e histórico de esquizofrenia na família (assim como qualquer droga, incluindo o álcool). Que tal então se criássemos uma lei que obrigasse os daimistas a tirarem uma carteirinha e passarem por exames médicos periódicos para garantir que eles continuam saudáveis?

Algo parecido poderia ser feito com outras drogas. Vários estados americanos, por exemplo, têm feito experiências bem sucedidas com a maconha: qualquer um pode comprar desde que se cadastre e passe por um exame médico. Isso está matando a violência ligada ao tráfico e melhorando a saúde dos usuários. Da mesma forma, o Brasil tem feito avanços na forma como tem lidado com as duas drogas que mais matam gente no mundo: tabaco e álcool. Em vez de proibir, está se criando regras duras para evitar que outras pessoas sejam prejudicadas pelo consumo: batidas policiais para prender motoristas bêbados, proibição de se fumar em ambientes fechados. Assim respeita-se as liberdades individuais sem que terceiros saiam prejudicados. E não transformamos o Brasil no Irã.

Como é que você escolhe cerveja no bar?

Usa critérios objetivos – o preço, o gosto, a composição nutricional, o comportamento da empresa? Ou deixa-se levar pela imagem? Escolhe a que tem o logotipo mais simpático, a mulher mais gostosa fazendo propaganda, a mensagem mais divertida?

Ontem, domingão, fui a um almoço delicioso na casa de um amigo, que é cientista político. Festa boa, com crianças e risadas, reencontros e futebol na TV, um desses almoços que duram tanto tempo que acabam requentados para o jantar. Escrevo, portanto, de ressaca. Tenham paciência comigo.

Mas, como era a festa de um cientista político, a casa estava cheia de cientistas sociais, gente treinada em métodos e metodologias. Alguém então sugeriu usar desse know how para resolver a questão de qual cerveja escolher. “Vamos fazer um teste cego”, decidiu-se. Correram até o supermercado e compraram todas as oito marcas disponíveis, alguém criou uma planilha de Excel no laptop, outro numerou papeizinhos de 1 a 8 e colou-os em oito copos idênticos.

Funcionava assim: uma pessoa, lá na lavanderia, servia um copo de cada vez, cada um com uma marca diferente de cerveja. O copo numerado, sem indicação da marca, era então passado para uma outra pessoa, que não o tinha visto ser servido. Observadores independentes, que não participavam da pesquisa, vigiavam qualquer eventual problema metodológico. No balcão da cozinha, de onde era impossível ver a lavanderia, o sujeito da pesquisa aguardava que os copos numerados chegassem, e experimentava um de cada vez. Cada copo continha apenas um golinho, para que o sujeito não tivesse que se embriagar em nome da ciência. Ele então bebia o gole, tentava adivinhar qual cerveja era e dava uma nota. Quando ele terminasse as oito, outro sujeito sentava-se, e os números eram trocados, para que um não influenciasse o outro.

Eu não participei. O futebol estava emocionante demais, não consegui largar para tomar meus golinhos. Portanto, os resultados que revelo em seguida não foram influenciados pelo meu próprio gosto:

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BOHE é Bohemia Confraria. DEVA é Devassa. ITAI é Itaipava. BRAH é Brahma. ANTA é Antarctica. SERRA é Serramalte. ORIG é Original. SKOL você sabe o que é.

Os quadradinhos amarelos são as vezes em que acertaram a marca da cerveja. Como se vê, tirando a Bohemia Confraria, todas as outras cervejas são irreconhecíveis para os meus amigos. A pessoa que palpitou melhor acertou apenas 3 das 8 cervejas.

A Bohemia Confraria se destacou, como se vê abaixo:

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Mas, considerando que ela custa quatro vezes mais caro que as outras, não foi tanto assim.

Agora eu tenho uma medição científica para me ajudar a escolher cerveja no bar – não preciso mais obedecer aos publicitários. Vou pedir aquela que tiver a melhor relação custo benefício nesta tabelinha. Posso até mudar de ideia, se os fabricantes das cervejas oferecerem para mim alguma razão concreta para isso (por exemplo, tem uma cerveja americana que eu bebo sempre que vou para os EUA só porque ela patrocina eventos ciclísticos, e eu adoro bicicletas).

Claro que um teste envolvendo oito amigos não é lá uma amostragem muito grande. Mas, considerando que eles são amigos, confio no teste mais do que nos comerciais de TV. Já você não precisa seguir as indicações dos meus amigos. Faça seu próprio teste cego, e pare de obedecer aos comerciais!

Não é todo dia que a revista Wired cita Karl Marx.

A Wired é uma deliciosa revista sobre tecnologia e cultura impressa no Vale do Silício, na Califórnia, o coração inovador do capitalismo, lá onde as tecnologias que têm mudado o mundo nascem. Portanto, não estou falando do Pravda ou do Granma. Na edição de fevereiro, a revista trouxe na capa a manchete “A nova revolução industrial” e previu que o mundo da indústria, dos produtos, dos objetos está prestes a passar pela mesma ruptura que o mundo dos arquivos digitais, das músicas e dos filmes passou na última década: o colapso dos gigantes e o alastramento de nanicos inovadores. Em outras palavras, átomos são os novos bits.

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Marx, em sua crítica ao capitalismo, afirmou que, com a industrialização, um artesão deixou de poder comprar as ferramentas de seu trabalho. Um sapateiro jamais teria dinheiro para bancar as máquinas de uma fábrica de sapatos, um mecânico, por melhor que fosse, jamais poderia competir com Henry Ford. Portanto, estávamos destinados a viver num mundo onde os capitalistas – donos dos “meios de produção” – exploram os trabalhadores. Daí a necessidade de uma revolução.

Pois a matéria da Wired, escrita por Chris Anderson, editor-chefe da revista e autor dos best sellers “Grátis” e “Cauda Longa”, mostra que essa revolução pode ser tecnológica.  Anderson afirma que, cada vez mais, um cidadão comum, com talento e uma boa ideia, pode sim ter acesso aos meios de produção. Já há um monte de fábricas chinesas que atende pessoas físicas pela internet e produz qualquer coisa que alguém imaginar. Há centros open source como a TechShop, uma oficina americana que dispõe de máquinas sofisticadíssimas para produzir protótipos e aluga-as para qualquer pessoa por uma pequena taxa. Há impressoras 3D, que produzem objetos tridimensionais a partir de um arquivo de computador, para fazer protótipos e testar produtos. E essas impressoras já custam só 1.000 dólares nos EUA. Há sites que comercializam produtos criados na garagem e repartem os lucros com justiça. Enfim, quem tiver uma boa ideia para atender a uma necessidade do mercado e souber como concretizá-la já pode lançar um produto e ganhar dinheiro sem precisar ser uma empresa gigante. Na verdade, provavelmente vai levar vantagem sobre uma empresa gigante, porque tem mais agilidade e menos custos para manter uma estrutura hierárquica.

Anderson conta, por exemplo, a história deste carrão aí embaixo:

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Trata-se do Rally Fighter, um carro criado colaborativamente por uma comunidade de amantes de carros que se encontrou na internet, num site criado por uma empresa pequena chamada Local Motors. Primeiro houve um concurso para escolher o visual do carrão: ganhou um desenho do jovem designer Sangho Kim, que levou um prêmio de 10.000 dólares. O projeto então foi desenvolvido em conjunto pela empresa e pela comunidade. A empresa cuidava para que o veículo funcionasse direito e fosse seguro, a comunidade caprichava para deixá-lo bonito e criativo. O carro vai ser lançado em junho, e é totalmente “open source” – ou seja, código aberto, qualquer pessoa pode ver e copiar seu projeto. O mais interessante é que a Local Motors vai permitir que pessoas comuns projetem acessórios para o Rally Fighter – ou seja, o consumidor pode comprar um carro já equipado com peças que ele mesmo inventou. É um sistema parecido com o do iPhone, que permite que desenvolvedores do mundo inteiro criem aplicativos para o telefone e, inclusive, ganhem dinheiro com isso.

A Local Motors não vai matar a Ford, claro. É uma operação pequena. A empresa tem só 10 funcionários (aumentará para 50 ainda este ano). Mas pô: eles fazem carros!

Para provar que sabe do que está falando, Anderson contou que até ele próprio está embarcando na nova revolução industrial. Ele também criou sua própria indústria: a DIY Drones. Começou da mesma forma que a Local Motors: com um site para aficcionados. No caso, amantes de “veículos aéreos não-tripulados”, ou “drones”, aqueles aviõezinhos-espiões comandados por computador que sobrevoam as coisas tirando fotos (o exército americano tem um monte deles, que custam milhões de dólares cada um). Anderson contratou o melhor sujeito que apareceu lá no site – um tímido nerd mexicano de só 21 anos chamado Jordi Muñoz, que virou o chefe de tecnologia da DIY Drones. Usando um aviãozinho de controle remoto, sensores disponíveis no mercado e equipamentos fáceis de se conseguir, como um GPS, Muñoz, Anderson e a comunidade do site desenvolveram um avião-robô e um balão-robô, que estão à venda pela internet por apenas algumas centenas de dólares. A DIY Drones, criada por Chris Anderson na sua garagem há só dois anos, já está perto de valer 1 milhão de dólares.

Claro que essas histórias incríveis não poderiam acontecer aqui no Brasil – onde a baixa qualidade da produção e a burocracia kafkiana estão no caminho dos inovadores. Claro também que, por mais que essas novas empresas sejam fascinantes, há uma lista enorme de riscos ligados a esse novo jeito de produzir – imagine o impacto ambiental que indústrias de fundo de quintal podem causar. Mas a reportagem me fez mais uma vez me admirar com o incrível potencial transformador destes tempos em que vivemos. Vou morrer num mundo bem diferente daquele onde nasci.

Tem algo profundamente errado no nosso modelo econômico. O problema não é o “capitalismo”, é uma doença do capitalismo: um pensamento financeiro criminosamente insustentável que se espalhou por toda a economia (inclusive em países comunistas). Precisamos erradicar essa doença se queremos ver a luz no fim do túnel.

Numa cena do filme "Gomorra", imigrantes ilegais fazem seu papel para alimentar o PIB e a máfia.

Numa cena do filme "Gomorra", imigrantes ilegais fazem sua parte para alimentar o PIB e a máfia.

Neste post eu quero tentar explicar que doença é essa. Vou partir de um exemplo concreto para deixar essa discussão mais clara.

O exemplo é do livro Gomorra, do jornalista italiano Roberto Saviano, transformado num filme com o mesmo nome. Saviano revela que as grandes grifes de moda italianas, para diminuir seus custos, tercerizaram os seus serviços de tecelagem. Para reduzir mais ainda os custos, eles criaram um sistema de concorrência. É assim: as grifes fazem o desenho das roupas e entregam para várias pequenas empresas de costura. Quem conseguir produzir mais em menos tempo ganha a concorrência e é pago. Quem perde a concorrência não ganha nada – trabalhou de graça e pode ficar com as roupas produzidas.

Do ponto de vista estritamente financeiro, esse sistema é um grande sucesso. O incentivo da concorrência garante preços baixíssimos e uma produção muito veloz. Desde que o sistema foi implantado, os custos de produção baixaram e as margens de lucro cresceram. Ou seja, o sistema funciona. Mas ele tem um monte de consequências, das quais Saviano (que está jurado de morte pela Camorra, a máfia napolitana) fala em seu livro.

Algumas dessas consequências afetam as próprias grifes. Exemplo: a pirataria cresce, gerando competição desleal para os produtos originais. É que as empresas que perdem a concorrência sobram com um monte de roupas. Óbvio que eles vão tentar reduzir o prejuízo vendendo o encalhe aos “comerciantes informais”. O resultado é que o mercado é inundado por roupas e acessórios piratas que custam várias vezes menos que as originais, mas têm um padrão de qualidade parecidíssimo, às vezes até superior (porque a concorrência seleciona apenas rapidez, fazendo com que produtores mais caprichosos saiam em desvantagem).

Outras consequências afetam a sociedade inteira. As regras da concorrência são um incentivo para contratar imigrantes ilegais (que topam trabalhar dia e noite, inclusive no fim-de-semana, num regime que só pode ser descrito como de escravidão). Diante desses escravos ilegais, profissionais italianos que prezam a qualidade (uma tradição do país) perdem seus empregos, o que desestrutura famílias. Todo esse ambiente ilegal atrai gangsters armados que se dedicam a extorquir as empresas. O dinheiro dos produtos de grifes acaba então sendo usado para comprar armas para o crime organizado

Essas consequências sinistras do modelo de produção – a pirataria, a escravidão, o desemprego, o crime organizado – são as chamadas “externalidades”. Externalidades são custos não computados. Quando os acionistas das grifes de moda olham os resultados da empresa, ficam felizões com os números. Eles acham essas concorrências fantásticas. Mas isso acontece só porque eles não estão computando custos reais à sociedade e à própria empresa. Por causa desse sistema, os governos perdem uma grana em polícia, hospitais, cadeias. Sem falar nas mortes – o mais definitivo dos prejuízos.

O corajoso jornalista Roberto Saviano, que está ameaçado de morte, vive sob escoplta policial e entrou em depressão. Quem mandou desafiar o modelo econômico?

O corajoso jornalista Roberto Saviano, que está ameaçado de morte, vive sob escolta policiale entrou em depressão. Quem mandou desafiar o modelo econômico?

Claro que eu escolhi um exemplo extremo. Nem todas as empresas causam tantos danos. Mas essa mesma lógica está em toda parte, no mundo inteiro, causando problemas maiores e menores. A imensa maioria das empresas hoje toma decisões baseadas apenas no quanto se economiza em custos e no quanto se aumenta as receitas, ignorando-se todos os outros fatores.

Algumas décadas atrás, as empresas eram no geral grupos de pessoas que sabiam fazer bem um trabalho. As grifes de moda italianas, por exemplo, contavam com os costureiros mais talentosos, tinham o melhor design, usavam o material de maior qualidade. Produziam, portanto, produtos melhores do que os outros e, por isso, vendiam mais caro.

Mas, a partir dos anos 80, uma onda financista se espalhou pelo mundo. Empresas de todo tipo começaram a perceber que podiam reduzir os custos (e a qualidade) e ganhar mais com isso. As grifes italianas, por exemplo, passaram a fazer um produto ordinário, mas ainda assim caríssimo (porque as pessoas já tinham se acostumado a pagar mais pelas grifes). Lentamente, o pessoal do financeiro passou a controlar todas as empresas. Hoje em dia, no geral, um CEO é um sujeito bom de cortar custos e aumentar preços, não um cara que entende do negócio da empresa dele.

Esse pensamento dentro das empresas na verdade é consequência de uma tendência da macroeconomia. Investidores querem ganhar cada vez mais com ações, por isso pressionam as empresas a lucrar mais, e assim as empresas espremem os funcionários, os fornecedores e os consumidores. Com isso, as bolsas sobem, os PIBs crescem, os bancos comemoram. Mas as externalidades se multiplicam, sem que o pessoal do financeiro se dê conta. Espalhamos poluição, crime, injustiça, exploração e morte pelo mundo, em troca de décimos de pontos percentuais no PIB.

Está na hora de as empresas tirarem a galera do financeiro da presidência e colocarem-na no seu lugar: o departamento de contabilidade. Esse pessoal é fundamental para que a economia funcione. Mas eles não podem mandar no mundo.