Por que é que a discussão sobre mudanças climáticas hoje em dia é tão absurdamente polarizada? Por que é que o mundo parece dividido entre aqueles que acreditam nas mudanças climáticas causadas pelo homem e os que definitivamente não acreditam, e uns parecem ter certeza de que os outros são picaretas enganadores mal intencionados?
A revista The Economist publicou semana passada uma reportagem excelente, que sumariza a discussão científica sobre o assunto, e que recomendo muitíssimo a quem quer ir além da polêmica e realmente entender o que está acontecendo. Um dos achados da revista foi perceber que a polarização é consequência do fato de que há dois modos de olhar para a questão. Há quem ache que a ciência do clima é um castelo de cartas, e há quem ache que é um quebra-cabeças. Estes últimos acreditam que os cientistas estão lentamente adicionando peças que vão formando uma imagem. Eventualmente, uma ou outra peça não encaixa, mas o jeito de lidar com isso é ter paciência e testar outra peça, e outra, e outra. No final, a fotografia vai aparecer – esses são os “aquecimentistas”. Já os outros, que acham que estamos empilhando cartas, acreditam que, se uma delas que esteja na base da pirâmide se revelar uma fraude, todas vão despencar. Esses são os “negacionistas”.
Nos últimos meses, os negacionistas estiveram em polvorosa. Uma série de denúncias mostrou que os cientistas do IPCC andaram dando mancadas: negaram-se a compartilhar informações com adversários, utilizaram dados suspeitos, revelaram-se intolerantes e nem sempre confiáveis. Para os negacionistas – inclusive aqueles que frequentam a área de comentários deste blog – o castelo desmoronou. Como a teoria das mudanças climáticas está apoiada em alguns dados ruins, ela desabou.
Acontece que os negacionistas estão enganados: a ciência do clima não é um castelo de cartas. Ela é um quebra-cabeças.
Uma teoria é um modelo segundo o qual uma coisa funciona. Dados são observações do mundo real. Teorias se apóiam em dados. Se você fizer uma teoria lindona, mas, na hora de observar o mundo, os dados não baterem com ela, sua teoria cai e precisamos encontrar outra. No geral, dados são simples e teorias são complexas. Dados costumam ser claros, objetivos, precisos, podem ser expressos em números. Teorias tendem a ser subjetivas, especulativas, argumentativas.
Acontece que, no caso das mudanças climáticas, é o contrário: a teoria é muito mais simples que os dados. É por isso que tanta gente tem dificuldade de entender o assunto e entra na armadilha do castelo de cartas.
A teoria por trás do aquecimento global é bastante simples. Não há polêmica nenhuma sobre ela. Sua base está nas leis da termodinâmica, formuladas no século 17. A primeira dessas leis é o princípio da conservação da energia – ela diz que a energia do Universo é constante. Por essa lei, a temperatura da Terra se manterá constante desde que a quantidade de energia que entra (os raios do sol) seja igual à quantidade que sai (o calor que escapa da atmosfera). Sabe-se também que alguns gases absorvem calor – entre eles o gás carbônico – e portanto diminuem a perda de calor da atmosfera. E ninguém tem dúvidas de que a humanidade está aumentando muito a concentração desses gases – nossas melhores medições mostram que a concentração, que foi constante por 10.000 anos, tende a dobrar de 280 ppm (partes por milhão) para 560 ppm entre 1750 e 2070 (hoje a concentração é de 387 ppm). Ou seja, a teoria do aquecimento global é tão simples que pode ser comprovada usando-se apenas ciência que qualquer estudante do segundo grau conhece.
Já os dados… Os dados são complicadíssimos. Medir a temperatura de um planeta não é tão simples quanto enfiar um termômetro debaixo do braço (até porque planetas não têm braços). Há um milhão de fatores atrapalhando a precisão das medições: nuvens, fenômenos naturais cíclicos, diferenças nos critérios de medição, influências de microclimas, mudanças na paisagem da Terra ao longo dos tempos (cidades são mais quentes que florestas). Precisamos nos basear em dados incertos, fazer inferências baseadas em anéis de crescimento de árvores e gelo soterrado nos polos. Isso gera um número astronômico de incertezas. Aí pegamos essas incertezas todas e jogamos em um computador, e o computador devolve um número. É com esse número que precisamos trabalhar. É, portanto, um número tão escorregadio quanto pista de esqui.
Hoje, o melhor número que conseguimos é o seguinte: no século 21, a temperatura da Terra vai subir entre 1,1 e 6,4 graus por causas humanas. Se subir 1,1, provavelmente teremos um pequeno aumento nos furacões, nas tempestades, nas secas e nas extinções, mas não é o fim do mundo. A vida continua mais ou menos do jeito que tem sido. Se subir 6,4, os efeitos especiais de Hollywood vão ficar no chinelo na comparação com as catástrofes que vão acontecer no mundo real. Um aumento de 2 graus é normalmente visto como a fronteira entre a normalidade relativa e a tragédia.
Claro que “entre 1,1 e 6,4” é uma margem desgraçada de grande. É um nível de incerteza gigante e desconfortável. Como diz a Economist, “os céticos estão certos ao dizerem que as incertezas dominam a ciência do clima. Mas eles estão errados ao afirmarem que essas incertezas justificam a inação”. Se analisarmos estatisticamente os números do IPCC, veremos que há uma chance em dez de que não haja razão para drama. Suponha que o IPCC esteja mesmo superestimando os perigos, numa razão de 5 vezes. Ainda assim, a chance de estarmos rumando para o desastre seria de 50%. Imagine que você soubesse que seu carro tem 50% de chances de ser roubado. Você faria seguro? (Detalhe: o seguro é relativamente barato.)