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Arquivo mensal: dezembro 2009

Tem uns canais de TV a cabo que passam uns programas legais, mas colocam intervalos comerciais imensos e frequentes, que vão ficando mais imensos e mais frequentes à medida em que o programa avança, quando você já está fisgado.

Tem uns shopping centers que projetam um sistema complicadíssimo de escadas rolantes para forçar você a passar em frente a dezenas de vitrines antes de chegar ao cinema.

Tem uns sistemas de assinatura que tiram dinheiro do seu cartão de crédito sem pedir antes, apenas com o argumento de que você não cancelou.

Tem uns restaurantes que colocam preços bem baixos nos pratos, mas cobram uma fortuna pelo couvert, sem perguntar antes se você quer, sem avisar que custa uma fortuna.

Tem gente que cria dificuldade para vender bem caro facilidade.

Legal.

Tudo isso aí faz o PIB crescer. É dinheiro circulando na economia. Quer dizer que é bom, então?

E ajudar um vizinho a construir algo, sem cobrar nada, não movimenta a economia.

É ruim então?

Dinheiro é bom. Dinheiro em troca de dedicação, de produto de qualidade, de esforço, de cuidado é ótimo. Mas dinheiro não é tudo, não. E não vale tudo para movimentar a economia.

Tirem o olho da minha carteira.

amor

Foto: Alexandre Hamada Possi / Flickr / CC

Um dos assuntos mais delicados do movimento ambiental é população. O argumento é o seguinte: mudanças climáticas, extinções de espécies, colapso dos ecossistemas, caos ambiental são apenas sintomas. A doença é uma só: há demais de nós. Há uma infestação de humanos na Terra e é isso a causa de todo o resto dos problemas. Éramos 2 bilhões em 1927, seremos 7 bilhões em 2012. Nesse ritmo, é óbvio que o planeta não dá conta.

As barras de cor sólida são números reais, as listradas são projeções.

As barras de cor sólida são números reais, as listradas são projeções.

Esse assunto é delicado por razões históricas e emocionais.

Históricas: falar de superpopulação faz lembrar das campanhas eugênicas de esterilização forçada e de eutanásia dos nazistas. Da ideia de que vidas “que não valem a pena ser vividas” devem ser exterminadas. Faz lembrar que é hábito de ditaduras controlar o ritmo de crescimento da população.

Emocionais: a ideia central do ambientalismo é tentar poupar o planeta para as gerações futuras. É não consumir tudo agora, para que nossos filhos e netos possam saber o que é uma onça, uma baleia, uma praia, um outono. Se começarmos a dizer que não temos que ter filhos ou netos, a coisa começa a perder o sentido. Por isso, nenhuma organização ambiental importante defende que as pessoas deixem de ter filhos: eles não querem afastar sua audiência mais importante, os pais preocupados.

Hoje me deparei com uma entrevista inteligente com um químico alemão chamado Michael Braungart, professor da Universidade Erasmus de Rotterdam. Braungart teve a coragem de enfrentar esse assunto delicado. Olha o que ele disse:

“A biomassa das formigas é quatro vezes maior que a dos humanos. E, como elas trabalham mais duro do que nós, o seu consumo de calorias equivale ao de uma população de 30 bilhões de humanos. Mas elas não são um problema para o ambiente.”

Ou seja, mesmo com uma população imensa, é possível não destruir recursos finitos. Achei chocante pensar que, se você colocar a população mundial de formigas numa balança, ela vai pesar o quádruplo da população humana, e que seu consumo de energia para viver é quase o quíntuplo do nosso. Mas isso, obviamente, não resolve nosso problema. Nós produzimos esgoto, emitimos carbono, queimamos a mata e espalhamos sacos plásticos e latinhas de cerveja por onde passamos – elas não.

Mas, no mínimo, Braungart faz a gente pensar. A explosão populacional humana certamente é parte do problema – simplesmente não haverá recursos para todo mundo se continuarmos nos comportando como quando éramos 1 bilhão de pessoas. Mas isso não quer dizer que a única solução possível para nós seja reduzir a população. Há uma outra: reduzir drasticamente o impacto negativo que cada um de nós causa. De preferência, reduzir a zero, de forma que o aumento da população deixe de ser um problema.

Braungart é pesquisador do Instituto Holandês de Pesquisa para Transições (Drift, na sigla holandesa). O papel do Drift é imaginar um design para uma nova era. No futuro imaginado por eles, os produtos não consomem recursos da Terra, nem um pouquinho. Tudo aquilo que não consumimos é reaproveitado, compostado, reciclado. Tudo é eficiente, não se joga fora nem energia. Tudo é feito para durar.

Mais ou menos como as formigas fazem.

A boa notícia é que a explosão populacional está diminuindo de ritmo. As projeções indicam que a população pode se estabilizar lá pelo fim do século. Ou seja: se conseguirmos fazer a tal transição para um modelo de baixo impacto, não estaremos apenas adiando problemas inevitáveis. Estaremos efetivamente no rumo de um futuro sustentável.

Deixeu tentar adivinhar como é que funciona o lugar onde você trabalha. Tem um chefão bem pago numa sala bem espaçosa, que dá ordens para alguns chefinhos. Não tem? Aí cada um dos chefinhos dá ordens para um certo número de pessoas e assim por diante, até chegar à peãozada lá embaixo, que faz o trabalho.

Pegue o organograma de qualquer grande estrutura – seja ela uma empresa, um governo ou uma ONG – e o mais provável é que ele se pareça com isso:

screen-shot-2009-12-14-at-31929-pmTem uma bolinha no centro de tudo (o chefão), ligada aos chefinhos, que se ligam à peãozada.

Esse modelo de trabalho tem seus méritos. A estrutura hierárquica garante que todo mundo esteja engajado num projeto comum. Há controle sobre todos.

Mas ele tem suas desvantagens também. O pessoal longe do centro não tem autonomia nenhuma para experimentar. O trabalho deles é observar o problema, mandar as informações para o centro, esperar a decisão voltar, e depois obedecer as ordens. Isso pode ser uma baita desvantagem em tempos de mudanças de paradigma, como os atuais, quando nada é mais importante do que ter flexibilidade para inovar.

Agora, imagine que a gente vivesse num modelo que fosse mais assim:

screen-shot-2009-12-14-at-31942-pmAs bolinhas são exatamente as mesmas, mas mudou o jeito como elas se conectam. Cada uma está ligada a um monte de outras. Não tem centro, todo mundo está em contato com os problemas e tem liberdade para decidir como lidar com eles.

Isso é uma rede. Cada indivíduo aí tem suas atribuições, trabalha do seu jeito, tem seus objetivos. Cada um é o chefe do seu pedacinho. O resultado são indivíduos mais engajados, mais motivados, mais criativos. Mil cabeças, em vez de uma cabeça só com 2.000 braços.

Por milênios, esse tipo de organização era uma impossibilidade prática. Era simplesmente impossível alinhar um monte de interesses de um jeito que essa rede não virasse um caos, com cada um trabalhando para o seu próprio bem. Mas, nos últimos anos, graças às novas tecnologias de comunicação, começaram a surgir pelo mundo experiências animadoras, que dão a esperança de que logo logo vai ser possível produzir coisas grandiosas sem hierarquias rígidas.

No mundo dos negócios, o exemplo mais impressionante é o Google, claro. O Google é uma empresa gigantesca, uma corporação. Mas é também um lugar onde todo mundo é incentivado a ter seus “projetos pessoais”, que na verdade não são exatamente pessoais, são do Google. Qualquer bolinha na rede tem liberdade para inventar algo, mesmo que o chefão nem saiba do que se trata. Cada funcionário pode se relacionar diretamente com o público, sem ter que passar pela hierarquia inteira antes. Isso dá a todo mundo liberdade para experimentar e aprender com seus erros e acertos. Resultado: em poucos anos, uma empresinha de garagem virou uma das maiores do mundo.

Rede é também a forma de (des)organização da internet. Ninguém manda aqui, não há uma hierarquia. Ainda assim, bilhões de coisas são produzidas – vídeos, fotos, softwares, enciclopédias, num ritmo assustadoramente rápido, um milhão de experimentações por segundo. O mundo está mudando rápido e tenho certeza de que vão ser redes, e não estruturas hierárquicas, que vão liderar essa mudança.

Tem muita gente que adora ficar discutindo se é melhor ser de direita ou de esquerda. A direita quer menos governo e mais mercado, a esquerda quer o contrário. Para mim, essa discussão é totalmente secundária. Importante não é escolher entre empresa privada e governo – é entender como eles se organizam. Hoje, no Brasil, tanto os governos quanto as empresas são imensamente hierarquizados e autoritários. É o chefe que manda, ninguém experimenta, ninguém inova. Tanto os funcionários públicos quanto os privados estão esmagados debaixo de uma pesada estrutura hierárquica. Morre-se de medo de perder o controle.

Enquanto não aprendermos a formar redes mais  flexíveis, seremos o país da burocracia, do medo de arriscar, do autoritarismo, da falta de inovação. Tanto no setor público quanto no privado.

O Brasil aboliu a escravidão em 1888. Portanto, 75 anos depois da Argentina, 67 anos depois do Equador, Colômbia e Venezuela, 23 depois dos Estados Unidos, 2 depois de Cuba. Não é à toa que muitos fazendeiros das Américas conseguiram diminuir seu prejuízo revendendo escravos para o Brasil. Quando chegou a nossa abolição, os fazendeiros daqui ficaram com o mico: não havia mais para onde vendê-los. Éramos o último país da América a preservar essa instituição horrenda.

Acabei de ler um livro delicioso – A Capital da Solidão, uma história da cidade de São Paulo, de Roberto Pompeu de Toledo, colunista da Veja. Pompeu de Toledo conta dos bastidores da abolição. Muitos dos fazendeiros de café de São Paulo, uma gente culta, estudada na Europa, com princípios liberais (foram eles que fundaram o Partido Republicano, e que derrubaram o império), até concordavam com a imoralidade da escravidão. Mas eles achavam que era impossível viver sem ela. Sem escravos, o país quebraria.

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O livro cita uma defesa da escravidão, publicada no jornal republicano A Província de S.Paulo (depois rebatizado de O Estado de S.Paulo):

“Um abolicionismo infrene, baseado unicamente na espoliação de direitos adquiridos e no assalto de propriedades penosamente constituídas, propaga-se aos quatro cantos brasileiros, como uma necessidade palpitante e urgente, ainda que em seu louco caminhar leve atrás de si a devastação e a ruína.”

Tem verdade nessa frase: o abolicionismo realmente desrespeitava “direitos adquiridos”. Os fazendeiros tinham gasto dinheiro para adquirir a propriedade de escravos, e agora se propunha que eles deixassem de ser coisa para virar gente. Com isso, os fazendeiros simplesmente perderiam sua propriedade. Mas “direitos adquiridos” valem mais que a liberdade, que a vida humana?

Esse impasse só se desfez quando ficou claro que os interesses financeiros não seriam assim tão desrespeitados. Em 1870, um fazendeiro fez as contas e descobriu que, pelos preços da época, o dinheiro necessário para comprar 100 escravos era equivalente a pagar 1.666 trabalhadores livres por um ano. Ao longo dos anos 1880, os fazendeiros paulistas, com ajuda de dinheiro público, criaram um esquema para trazer trabalhadores da Europa. Só em 1888, quando estava claro que os fazendeiros não teriam prejuízo algum e que haveria mão-de-obra para substituir os escravos, aboliu-se a escravatura.

No final, não houve nem devastação nem ruína, para surpresa dos escravagistas. A produtividade nas fazendas explodiu, porque gente livre tende a trabalhar melhor que gente forçada. E a economia deslanchou, impulsionada pelos trabalhadores assalariados. Mas resta o fato: mantivemos seres humanos na servidão por mais tempo do que deveríamos.

Num certo sentido, o atual momento histórico tem alguns paralelos com o que aconteceu 120 anos atrás. De novo, nos demos conta da imoralidade do nosso sistema produtivo. Do mesmo jeito que não faz sentido ser dono de outros seres humanos, está ficando claro que não podemos nos considerar donos de recursos naturais finitos, já que eles pertencem às próximas gerações. De novo, há um conflito entre o que consideramos certo e os interesses de alguns grupos (“eu comprei este rio, ele é meu”). E hoje, assim como no século 19, essa discussão só começou a ser levada a sério quando ficou claro que poderíamos mudar de paradigma sem prejuízos financeiros. Aparentemente, sustentabilidade pode dar lucros, porque significa que podemos explorar nosso negócio por mais tempo.

Mas isso não apaga o principal: surrupiar recursos dos nossos filhos e netos é errado, ainda que traga lucros. Dessa vez, o Brasil não pode se dar ao luxo de ficar 75 anos dando uma de migué. Até porque mudar antes o que tem que ser mudado de qualquer jeito é uma oportunidade. Deixemos o mico para outro.