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Arquivo mensal: novembro 2009

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Klaus Kinski, que interpretou Fitzcarraldo

Se você quer tirar o diretor alemão Werner Herzog do sério, diga a ele que a natureza é boa.

“A natureza não é boa nem má. Ela é indiferente. É indiferente a nós, ela não se importa se vivemos ou morremos”, diz ele.

Em 1982, Herzog dirigiu “Fitzcarraldo”, um épico alemão filmado no meio da floresta amazônica, sobre um aventureiro irlandês que, no século 19, saiu de navio em busca de fortuna na selva. Na cena mais famosa, Fitzcarraldo e sua tripulação, vendo o caminho bloqueado à sua frente, tiram o navio do rio, empurram-no morro acima e depois morro abaixo, derrubando a floresta, para chegar a um outro rio.

Herzog, que é um doido, resolveu que o único jeito de a cena ficar realista era realmente cortar a mata e empurrar o navio, reproduzindo o que tinha acontecido um século antes. A equipe de filmagem se converteu então numa expedição do século 19, seus facões zunindo na mata, imundos de lama, cercados de mosquitos, avançando na floresta.

A uma certa altura uma cobra venenosa surgiu na mata e mordeu o pé de um membro da equipe de filmagem que tinha uma serra elétrica nas mãos. O trabalhador não teve dúvidas: imediatamente baixou a serra contra a própria canela, perdendo o pé e salvando a vida.

Florestas ensinam isso para as pessoas: a ter coragem. Um covarde desses da cidade teria morrido aquele dia.

Mas… viver sem um pé?

Não é tão ruim quanto parece. Há pesquisas que mostram que, quando perdem um membro, as pessoas tendem a sofrer bastante. Mas o sofrimento dura semanas, no máximo alguns meses. Depois os índices de felicidade tendem a se estabilizar mais ou menos nos mesmos níveis de antes do acidente. (Aconteceu exatamente isso com a minha mãe, quando ela perdeu três dedos num acidente de cozinha. Ela ficou triste por dias, depois reagiu e hoje nós da família sempre esquecemos que ela tem sete dedos.)

Na semana que vem, os países do mundo vão se encontrar em Copenhague, para decidir se vão cortar o pé das mudanças climáticas ou covardemente esperarão o veneno se espalhar pela atmosfera. A maioria de nós humanos não se julga corajoso a ponto de agir como o trabalhador da equipe de Herzog. Mas coragem se aprende, se treina. Dá para se preparar para ter coragem. Coragem é uma mistura de saber o que é certo com uma boa oportunidade. Todos nós somos capazes de ser corajosos, se quisermos.

A Floresta Amazônica tem o poder de ensinar os homens a serem corajosos, como aquela equipe alemã de cinema provou em 1982. Deixemos ela em pé, não porque a natureza seja “boa”, mas porque precisamos dela. Deixemos ela em pé para os cineastas malucos do futuro. Se a Amazônia não for destruída, nós, brasileiros, fazemos nossa parte no desafio mundial de reduzir as emissões de carbono.

O que você pode fazer para ajudar? Boicotar carne da Amazônia ou que não tenha garantia de origem certificada. Boicotar madeira ou qualquer produto florestal sem o selo do FSC. De quebra, usar menos seu carro, ou vendê-o e comprar uma bicicleta. Consumir menos, reaproveitar mais, fazer os produtos durarem. Parece difícil?

Ah vá. Difícil é cortar o próprio pé.

Faz 2 dias que os comentários aqui no blog não funcionam. Pena, justo agora que o debate estava ficando bom, depois de passar uns dias dominado pela histeria. Ainda não consegui descobrir o que está acontecendo – espero que as coisas voltem logo ao normal. Mil desculpas a quem tentou comentar e não conseguiu.

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A edição da revista inglesa The Economist da semana passada dá a medida do quanto o Brasil está na moda. Na capa, o Cristo Redentor levanta voo, sob a manchete “O Brasil decola”. Lá dentro, um especial de 14 páginas, falando de bancos, commodities, classe média, além de uma bem sacada comparação entre o Brasil e os Estados Unidos. Fora do especial, mais Brasil: uma matéria sobre Dilma, outra sobre a Geyse da Uniban. Aquela tentando entender o paradoxo de um presidente com 80% de popularidade e uma candidata que não decola, esta tentando entender o paradoxo do país do carnaval ficar histérico por causa de uma mini-saia.

No meio de tanta coisa, passou despercebida por aqui uma outra referência ao Brasil. Na matéria “Virtualmente legal”, a Economist especula que o Brasil pode ser um dos próximos países a descriminalizar o uso de drogas. A matéria é bem interessante. Ela mostra que há uma tendência fortíssima no mundo desenvolvido e na América Latina de finalmente deixar a proibição das drogas para trás.

Posse de drogas deixou de ser crime na Espanha, Portugal, Itália, República Tcheca, nos três países bálticos, na Argentina, México e Colômbia. Praticamente todos os outros países europeus, embora teoricamente mantenham a proibição, estão deixando de prender gente pelo uso de drogas. Um bom exemplo é o Reino Unido, onde a posse de maconha continua criminalizada, mas apenas 0,2% das pessoas pegas com a droga vai para a cadeia. (O Brasil não tem números confiáveis, mas também aqui usuários de maconha raramente vão presos.) Nos EUA, já são 14 os estados que adotaram a descriminalização – o mesmo aconteceu em vários estados alemães e canadenses, territórios australianos e cantões suíços.

No gráfico da Economist, note como pouquíssimos usuários de drogas vão para a cadeia. E como a Holanda virou um dos países mais rigorosos da Europa.

No gráfico da Economist, note como pouquíssimos usuários de drogas vão para a cadeia na Europa. E como a Holanda foi ultrapassada e virou um dos países mais rigorosos do continente.

A atitude mais branda está dando resultados. A revista destaca o caso de Portugal, que tem uma das políticas mais liberais do mundo: em 2001, nossa ex-metrópole descriminalizou a posse e o uso de todas as drogas. Desde então, nem o consumo nem o número de usuários cresceu, mas a quantidade de gente procurando ajuda médica para combater a dependência aumentou. Descriminalizar as drogas, pelo jeito, teve um impacto positivo em praticamente todos os lugares que tentaram. O estado economizou dinheiro, as forças policiais foram liberadas para cuidar de assuntos mais importantes, as cadeias se esvaziaram e os dependentes em drogas se sentiram mais confiantes para procurar ajuda.

Mas nada disso atacou o maior problema ligado às drogas: o financiamento do crime organizado. Afinal, o uso de drogas está deixando de ser crime, mas a venda continua ilegal. Portanto, continua havendo o incentivo para que organizações criminosas se financiem com esse comércio.

Três estados americanos – Novo México, Rhode Island e Massachusetts – são os pioneiros em atacar esse problema. Eles estão licenciando organizações sem fins lucrativos para produzirem maconha legalmente, sob rígido controle. Hoje a maior parte da maconha nos EUA vem do México – e os cartéis de drogas mexicanos devem 70% de suas receitas ao lucrativo comércio de maconha para os gringos do norte. Se os americanos produzirem sua própria droga, o crime organizado mexicano vai perder receitas e influência. Enfim: os americanos, inventores da proibição das drogas, são hoje os pioneiros da sua desinvenção.

Enquanto isso, o Brasil está na moda, a ponto de merecer a capa da Economist. É uma pena que, até agora, não esteja aproveitando o bom momento para ficar na vanguarda dessa discussão. Ainda mais porque somos um dos países que mais tem a ganhar com uma nova direção na política de drogas. Afinal, enquanto nossa economia vai bem, nossa segurança pública, nossa justiça e a corrupção na política vão bem mal. E tudo isso poderia melhorar se nos livrássemos da proibição das drogas, que financia o crime, corrompe e desmoraliza as instituições.

É assim no país da Geyse da Uniban. A gente gosta de se imaginar muito avançado, muito liberal, muito respeitoso das liberdades individuais. Mas, na hora h, o moralismo sempre ganha a discussão. Sabe por quê? Porque grita mais alto.

Internet é mesmo uma coisa muito louca.

Em junho coloquei aqui no blog uma ferramenta que identifica o país de onde vem cada visitante e vai montando um mapa mundi com as bandeirinhas. Esta semana, cinco meses depois, uma pessoa no Camboja entrou no blog. Com isso, completam-se 100 países no meu mapa. Dá para sacar que a enorme maioria dos visitantes são brasileiros espalhados pelo mundo – as estatísticas atestam que os países com mais visitantes são aqueles com mais brasileiros (Brasil 89,9%, EUA 3,2%, Portugal 1,2%, Alemanha 0,7%, Reino Unido 0,6%, Japão 0,5%). Mas acho chocante constatar que estas palavrinhas despretensiosas têm sido eventualmente lidas na Bósnia, no Gabão, no Kuwait, na Líbia, em Cuba e no Vaticano.

Aproveito então este marco para mandar um abraço ao mundo.

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Já falei aqui do privilégio que foi ter participado do TEDx São Paulo, talvez o seminário mais intenso e inspirador a que já assisti (e olha que já assisti a muitos seminários). As apresentações vão ser disponibilizadas de graça na internet uma a uma, mais ou menos uma por semana. A primeira já está no ar: Guti Fraga, o criador do projeto Nós do Morro e o responsável por uma boa quantidade de lágrimas derramadas no sábado lá no Teatro da Móoca. (Outro palestrante, um pouco depois dele, disse que, “se eu chorar mais uma vez, eu desidrato”.)

Você vai precisar de:

1 panela

1 litro de água

1 barquinho de brinquedo

1 fogão

1 caixa de fósforos (no caso de o fogão não possuir acendimento automático)

Coloque a água na panela e leve a panela ao fogão. Acenda o fogão utilizando os fósforos. Acrescente o barquinho de brinquedo flutuando na água. Deixe a água esquentar por 15 minutos.

Você notará que a água tende a ficar mais e mais agitada. A partir daí, há um grande número de incertezas. Pode ser que a água inunde o barquinho e ele afunde. Pode ser que as bolhas façam o barquinho tombar. No caso de o barquinho ser de plástico, pode ser que ele derreta. É bastante difícil prever como o barquinho reagirá porque a água borbulhando é um sistema caótico carregado de energia (calor). E sistemas caóticos são imprevisíveis, ainda mais quando eles contêm muita energia.

Em linha gerais este experimento é um bom paralelo para a discussão sobre mudanças climáticas. É fartamente sabido que o fogo aquece a água na panela. Sabe-se também que a água aquecida carrega-se de energia e isso cria turbulências. Também sabe-se que um barquinho flutuando nessa água necessariamente será afetado por essa turbulência. Mas é dificílimo saber com certeza como ele será afetado.

Estamos na mesma situação no que se refere ao efeito das emissões de carbono no clima. Já está fartamente estabelecido que a emissão de gases de carbono e alguns outros causa o aumento da concentração desses gases na atmosfera. Ninguém mais tem dúvida de que a maior concentração implica numa mudança na dinâmica da radiação solar na Terra. Da mesma maneira, está mais do que provado que essa mudança provoca um aumento da temperatura média no planeta. Também está claro para todos que esse aumento da temperatura aumenta a turbulência na atmosfera. E se sabe há muito tempo que essa turbulência aumentada devasta ecossistemas, gera tempestades, furacões, tufões, chacoalha o mar, favorece o espalhamento de doenças tropicais. O que não se sabe ao certo é como exatamente essas coisas vão se dar.

No experimento que propus acima, cientista nenhum é capaz de prever que “uma bolha de vapor de 9 centímetros cúbicos vai se formar depois de 1 minuto de água fervendo e vai se chocar com a proa do barquinho fazendo com que a popa se incline a 65 o e o barco afunde”. Da mesma maneira, há um trilhão de incertezas sobre o modo como os efeitos das mudanças climáticas vão afetar o planeta. Mas não há incerteza nenhuma em relação à conexão entre a emissão de carbono por fontes humanas e a agitação do clima. Ninguém em sã consciência vai dizer que o barquinho na panela navegará até a Índia. Ninguém em sã consciência espera que uma atmosfera mais carregada de calor será mais positiva do que negativa para a vida na Terra (a não ser que você goste muito de mosquitos, baratas e águas-vivas).

PS: Vocês por favor me perdoem minha irritação com o comentarista Chesterton. Eu teria tido muito mais sucesso com o post de segunda-feira se eu poupasse vocês todos de comentários agressivos, tipo associar a negação das mudanças climáticas a deficiências das faculdades cognitivas ou envolver a família do Chesterton na discussão. Mas é que realmente esse assunto é irritante, principalmente quando percebemos que tem gente mais interessada em ganhar a discussão do que em efetivamente discutir ideias.

Você deve saber que, daqui a três semanas, vai começar em Copenhague, capital da Dinamarca, uma convenção internacional sobre mudanças climáticas. Você provavelmente sabe também que o Brasil decidiu se comprometer a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa em quase 40% até 2020 (comparando com a tendência atual). E, se você leu as notícias hoje, é provável que saiba também que Obama e seus colegas chefes de estado avisaram que a convenção de Copenhague não produzirá atitudes concretas, apenas cartas de compromisso.

Mas acho bem possível que você não saiba muito bem o que tudo isso significa.

Isso não é surpreendente. O assunto é realmente complexo. Envolve a compreensão do clima, que é um sistema caótico. Envolve a diplomacia mundial, que é o reino das intenções inconfessáveis escondidas atrás de palavras bonitas. Envolve uma compreensível revolta do status quo, tentando preservar seus privilégios em meio à turbulência de um mundo que obviamente precisa mudar de modelo. Envolve desafios a todas as áreas do conhecimento humano – das ciências naturais às econômicas, do desenho das estruturas de poder globais à atividade econômica em cada pequena comunidade humana do mundo.

Mas, no meio dessa imensa confusão, há algumas coisas que são simples de entender. E, se entendermos essas coisas, fica bem mais fácil acompanhar o resto do debate. É o seguinte:

1. Esta primeira eu nem deveria ter que dizer, mas não custa nada repetir: está mais do que claro para qualquer pessoa cujas capacidades cognitivas permitam a leitura de um gráfixo simples de dois eixos que as mudanças climáticas causadas por atividades humanas são um fato além de qualquer dúvida. Também não há dúvidas de que isso é má notícia: coisas terríveis irão acontecer no mundo inteiro, incluindo um monte de mortes, talvez em lugares muito próximos de você, a não ser que consigamos evitar que a temperatura suba mais do que 2 graus Celsius.

2. Aí você pergunta: e como é que eles sabem disso com tanta precisão? Se o assunto é tão complexo, como é que eles sabem que o número mágico é 2oC, e não 2,1 ou 1, 9? E como eles sabem quanto carbono teríamos que emitir para um aumento de 2oC? No que você tem razão: eles não sabem disso com precisão. Nosso nível de certeza é baixo – algo entre 40% e 60%. Mas, como disse Tasso Azevedo, do Ministério do Meio Ambiente, “não sei você, mas, se me dizem que meu avião tem entre 40% e 60% de chances de cair, eu não fico muito aliviado”. O número é uma combinação de milhões e milhões de números, no geral cada um deles não muito confiável. Ele é resultado de cálculos científicos realizados por seres humanos falíveis, e é enormemente influenciado por interesses políticos e financeiros (geralmente interesses ligados ao status quo). Enfim, ele não é preciso. Pode ser que o monte comece a feder quando a temperatura subir 1 grau, ou quando subir 3. Pode ser que os urubus se interessem mais pela gente no ano que vem, ou daqui a 10 anos, ou daqui a 40. Pode ser que já seja tarde demais hoje. Mas, com ou sem precisão nos números, quem diz “não há certeza sobre a temperatura exata na qual as mudanças climáticas se tornarão desastrosas, então não deveríamos fazer nada para combatê-las” é como se dissesse “não sabemos ainda a quantos metros está o muro, nem sua espessura exata, por isso devemos continuar acelerando na direção dele”.

3. Em 2005, o mundo emitia algo como 45 gigatoneladas de carbono. Se queremos garantir que a temperatura global não suba mais do que 2oC, não podemos emitir mais do que 450 1800 gigatoneladas nos próximos 100 anos. Ou seja, se mantivermos o ritmo de hoje, a vaca vai pro brejo em só 10 20 anos (porque, pelas projeções atuais, estaremos emitindo 70 gigatoneladas por ano em 2030). Quanto antes começarmos a mudar, melhor. Se não mudarmos, lidar com os tufões, furacões, secas e epidemias vai sair bem mais caro. Por isso o anúncio de ontem de que Copenhague não produziria atitudes concretas é má notícia. Mas isso não apaga um fato: a mudança terá que ser feita. Se não for hoje, será amanhã – e quanto mais demorar maior será o monte de esterco para a gente cavar.

4. O Brasil é talvez o país do mundo que tem mais a ganhar com essa mudança. Somos grandes emissores de carbono, graças aos desmatamentos e queimadas. Temos a sorte imensa de contar com uma matriz energética bem limpa, baseada em álcool e hidrelétricas. Ou seja, para nós é fácil e barato cortar emissões, basta manter as florestas de pé – enquanto os países ricos e os outros emergentes terão que gastar uma baba mudando suas matrizes energéticas. Some a isso o fato de que o Brasil não precisa mesmo desmatar: o que já foi desmatado é mais que suficiente para termos um setor agropecuário dinâmico e líder do mercado mundial. O Brasil já está entre os maiores produtores de muitas commodities. Se as negociações que começam em Copenhague derem certo, uma nova commodity valiosa será inventada: o crédito de carbono. E nós vamos faturar uma nota nesse novo mercado.

5. Só que, se o Brasil quer mesmo se dar bem no mercado de créditos de carbono, vai ser necessário que os países cheguem a um acordo preciso, com números e metas claras. Se não há metas, ninguém vai tirar dinheiro do bolso, e nós perdemos. Por isso, interessa muito ao Brasil comprometer-se com números, como uma forma de pressionar o resto do mundo a fazer o mesmo. Nem todos os países do mundo vão conseguir cumprir suas metas de redução. Para o Brasil, provavelmente será mais fácil do que para os países desenvolvidos. Isso significa que os países desenvolvidos provavelmente terão que dar muita grana para que países como o Brasil reduzam as emissões de carbono por eles. Nesse cenário, quanto mais o Brasil reduzir suas próprias emissões por conta própria, mais dinheiro poderá ganhar reduzindo pelos outros. Esse foi o argumento que convenceu Dilma e Lula a prometerem uma redução de 36,1% a 38,9% até 2020: eles perceberam que o país tem muito a ganhar (Dilma e Lula não são exatamente ambientalistas).

Sacaram?

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PS: o TEDx São Paulo, que aconteceu no sábado no Teatro da Moóca, foi de arrepiar. Muita coisa legal, apesar de ter começado com os maus auspícios deste que vos fala recitando bobagens. Com o tempo, as palestras vão sendo colocadas no ar, e eu dou os links.

Acabei de voltar de uma palestra excelente do Tasso Azevedo, assessor do Ministério do Meio Ambiente, um sujeito bem esperto e uma das maiores lideranças brasileiras no combate ao aquecimento global. O Tasso acredita que a transição para uma economia de baixo carbono pode ser uma baita oportunidade para o Brasil – sendo explícito: podemos ganhar muito dinheiro com isso. Enquanto ele falava, pensava na reunião que estava acontecendo ao mesmo tempo, em Brasília, entre os ministros, na qual se discutia as metas que o Brasil vai levar (ou não) a Copenhague, para a conferência sobre mudanças climáticas lá. A uma certa hora, toca o telefone dele. Ele pede desculpas para nós e atende. Só sei o que ouvi:

– Não posso falar muito… Diz logo. Hmm. Ihhhh. Xiiiiiii. I, mas aí é suicídio.

Aí ele desliga, olha para a gente e pergunta: “onde é que eu estava mesmo?”

Pelo jeito, a coisa não vai bem em Brasília.

Perguntei. Ele disse:

– Vamos reverter amanhã.

Voltarei em breve a esse assunto.

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Foto: denis rb – CC

Uma das coisas mais enriquecedoras – e também mais chocantes – de morar no exterior é aquilo que você aprende sobre o seu próprio pais. Para mim, ter passado um ano nos Estados Unidos, mais do que tudo, foi uma aula de Brasil. Todo dia eu saía de manhã e passava o dia convivendo com gente de toda parte do mundo e aprendendo, com essa convivência, que algumas coisas que eu sempre achei que eram parte da natureza humana não passavam de estranhezas bem particulares dos brasileiros.

Como sou um apaixonado por palavras, o que mais me chamava a atenção eram as diferenças que existem entre o nosso vocabulário e o vocabulário dos americanos e dos outros estrangeiros que conheci por lá. É incrível como há palavras que são ditas o tempo todo lá, mas nem existem aqui, ou têm um significado totalmente diferente. Essas diferenças de vocabulário são imensamente reveladoras do jeito brasileiro de pensar. Veja alguns exemplos:

  • A palavra inglesa “ accountability” simplesmente não tem equivalente em português. Geralmente ela é traduzida como “prestação de contas”, mas trata-se de uma escolha ruim. “Prestação de contas” é algo que você faz, enquanto “accountability” é algo que você tem. Talvez a tradução mais próxima fosse “responsabilidade”, mas aí é uma palavra ampla demais.
    Accountability”, para os americanos, é uma idéia central na democracia. O cientista político Larry Diamond, especialista em democracia, costuma dizer que os governos democráticos de alta qualidade precisam ter dois tipos de “accountability”: a vertical e a horizontal. “Accountability” vertical é a obrigação de prestar contas detalhadas à população. “Accountability” horizontal é fazer com que diferentes agências do governo tenham a atribuição de fiscalizar umas às outras, para garantir que tudo funcione bem. Lá há dois tipos de “accountability”, enquanto aqui nem temos a palavra. E os governos, no geral, não sentem a menor necessidade de prestar contas nem para baixo nem para o lado.
  • A expressão inglesa “rule of law” é outra ausente do vacabulário político brasileiro. Geralmente ela é traduzida como “estado de direito”, o que é bastante revelador da nossa relação com o estado: só estamos interessados nos “direitos”, mas não damos muita bola para as regras. “Rule of law” na verdade quer dizer “império da lei”, ou “domínio da lei”. Ou seja: a idéia de que as regras de um país são para valer, e para todos. Uma idéia tão estrangeira para o jeito brasileiro de pensar que não entrou nem para o dicionário.
  • Já a palavra “público” está presente nas duas línguas. Só que tem um significado bastante diferente em cada uma. Lá, “public” significa “do povo”, “da comunidade”. Aqui, pode querer dizer “do governo”, ou “grátis”. Empresa pública, no Brasil, é empresa estatal. Nos EUA, é empresa com ações na bolsa e obrigação de publicar informações financeiras detalhadas.
    Nos EUA, faculdade pública é paga, só que mais barata que as privadas, e no geral com qualidade um pouco inferior. No Brasil, faculdade pública é necessariamente grátis, com qualidade muito superior à das privadas e majoritariamente frequentada por gente de alto poder aquisitivo. Enfim, no Brasil os pobres pagam faculdade, enquanto os ricos ganham de graça. Taí um bom exemplo de algo que só percebi concretamente sobre o meu país quando tive a chance de sair dele.

Claro que tive também uma porção de motivos para me orgulhar do Brasil enquanto estava lá – e que morri de saudades. O Brasil tem uma porção de vantagens sobre os EUA, acredite, e ser brasileiro nos dias de hoje é ótimo para sua popularidade mundo afora. Mas isso não deve nos impedir de perceber as lacunas do nosso dicionário. E preenchê-las – não só com palavras, mas com novas atitudes.

Nós também ensinamos algumas palavras pros gringos. Por exemplo: "brigadeiro" e "caipirinha"

Nós também ensinamos algumas palavras pros gringos. Por exemplo: "brigadeiro" e "caipirinha"

Foto: denis rb – CC

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A frase é de Gandhi: “seja a mudança que você quer ver no mundo”.

Não, não esqueci do que aprendi na faculdade de jornalismo: jamais começar um texto citando Gandhi, Einstein ou Chaplin se você quer ser levado a sério neste mundo cínico. Sim, esse pessoal fala coisas bonitas, mas eles não são “pragmáticos”. São “ingênuos”, desconectados das realidades do mercado, ignorantes das sujeiras da política, sonhadores, poetas, bobocas.

Mas não resisti. Lembrei de Gandhi quando estava lendo um outro autor, Clay Shirky, um teórico dedicado a entender as mudanças que estão acontecendo no mundo hoje em dia (autor do ótimo livro na foto acima). Shirky tem uma tese interessante: a de que, quando uma grande revolução acontece, as velhas estruturas desabam rapidinho, mas demora anos, às vezes décadas, para as novas estruturas surgirem (quando Gutenberg inventou a imprensa, os escribas reclamaram por décadas da baixa qualidade da escrita que isso provocou).

É exatamente isso que está acontecendo hoje em dia. Institiuições antigas, aparentemente eternas, estão desabando – os grandes jornais do mundo estão em crise de identidade, a indústria automobilística está tendo que se reinventar, os governos têm que redefinir sua atuação, as profissões mudam todos os dias. Estamos perdidos, sem referências, sem ter no que acreditar. As ideologias do século 20 se transformaram em teorias sem conexão com o mundo real.

Isso é tremendamente angustiante. De repente, tudo aquilo em que acreditávamos está evaporando. O mundo está mudando tão rápido, todos os dias, que fica difícil ter crenças. Fica difícil saber o que é certo e o que é errado. E os cínicos – esse pessoal que adora apedrejar qualquer um que esteja bem intencionado – fazem a festa no meio da confusão.

Mas o fato é que viver no meio de uma revolução, se por um lado é complicado, é também um baita privilégio. Significa que vivemos uma época de construir coisas, de criar, de propor. Não é hora de ser cínico. Não temos tempo para isso. Nossa geração tem um papel fundamental: o de criar as estruturas sobre as quais se assentará nosso novo modelo de sociedade.

Esse trabalho – o de reconstruir o mundo – é um empreendimento coletivo. Nesse mundo de hoje, absurdamente fragmentado, no qual qualquer pessoa tem acesso ao resto do mundo via internet, todos têm um papel – não apenas os políticos, os empresários, os intelectuais, os “líderes”. Todos nós estamos envolvidos no projeto coletivo e inevitável de mudar o mundo.

O mais divertido é que não há cartilha para seguir. Ninguém sabe para onde ir. Depois da queda do muro de Berlim, do colapso do clima e da crise mundial, restou apenas uma certeza: a de que precisamos de um rumo novo. Que rumo é esse? Cabe a cada um de nós propor. O resultado, imprevisível, será a combinação de bilhões de contribuições.

Nosso papel então é imaginar o que queríamos que o mundo fosse e trabalhar para implantar essa visão. No final, certamente o mundo não vai ser como eu quero, ou como você quer. Mas cada um de nós tem a capacidade de empurrar um pouquinho a História para o lado que prefere. Tem gente fazendo isso em tempo integral, trabalhando por uma causa, por uma ideia, por uma inovação, por um projeto. Tem gente fazendo isso de noite, depois de voltar do trabalho. Tem gente fazendo isso nas horas de lazer. Tem gente fazendo isso nas relações pessoais, na vida em família, no bairro, no trânsito.

Tem gente fazendo coisas imensas, importantes, transformadoras. Tem gente colaborando com o pouquinho que está ao seu alcance. Eu, por exemplo, sinto-me bem ao andar de bicicleta em São Paulo porque sei que, estatisticamente, quanto mais bicicletas houver na rua, mais seguro o trânsito será para todos os ciclistas. Temos esse poder: o de alterar a paisagem. Cada novo ciclista na rua melhora a vida dos outros.

É uma contribuição minúscula, mas é isso que nos resta neste mundo, e devíamos ficar satisfeitos. É uma boa notícia. Não há mais grandes ideologias. Não há mais grandes autoridades. Só o que há é isso: um conjunto de bilhões de pessoas, cada uma delas modificando um pouquinho a paisagem. Se a maioria de nós ficar imobilizada pela ansiedade e pelo olhar crítico dos cínicos, construiremos pouco. Se cada um fizer seu pouquinho, temos boas chances de ficarmos bem orgulhosos do resultado.