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Amazônia

Acabo de receber a notícia de que Zé Claudio Ribeiro e sua esposa Maria do Espírito Santo foram assassinados perto de casa, em Nova Ipixuna, na região de Marabá, no Pará. Zé Claudio foi um dos palestrantes do TEDxAmazônia, conferência que ajudei a organizar, em Manaus, no final do ano passado. Lá, ele subiu ao palco para contar que sua vida estava sob ameaça. O motivo? Zé Claudio se negava a permitir a derrubada ilegal das imponentes castanheiras da terra onde vivia.

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A tragédia nos atinge logo depois do anúncio de um aumento colossal no desmatamento amazônico. Tudo indica que o progresso feito na titulação de terras na Amazônia e no cumprimento da lei durante a gestão de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente está mesmo escoando pelo ralo em meio à desregulamentação do novo código florestal e à incapacidade do estado de garantir o mínimo de respeito à lei.

Zé Claudio e Maria compraram essa briga porque achavam que as castanheiras são seres monumentais e que matá-los é tão cruel e sem sentido quando matar um ser humano. Eles viviam no Arco do Desmatamento, àrea amazônica assolada por devastação, crime e miséria, em meio a um boom de crescimento em Marabá que gera uma demanda infinita por madeira para construção. Castanheiras dão castanhas do Pará, um produto de grande valor econômico. Matá-las para fazer tábuas é um absurdo.

O mínimo que se espera agora é que as castanheiras pelas quais Zé Claudio e Maria morreram sejam protegidas e transformadas num museu vivo em homenagem ao casal. E que os autores dessa morte anunciada sejam exemplarmente punidos. Mas claro que o mais provável é que eles consigam suas tábuas.

Um dia, papeando à beira de uma cachoeira na Floresta Amazônica, reclamei da formigaiada que forrava o chão, ameaçando meus pés descalços. Meu guia, meio que assim de passagem, comentou:

– Esta saúva a gente come muito, quando não tem pimenta em casa.

Saúva? Pimenta?

– É, é apimentada. E dá para fazer chá também, parece capim-santo – disse Manuel, o guia, um caboclo de uns 60 anos, todos eles passados dentro do mato.

– Quer provar?

Relutei, confesso. Comer saúva, assim, sem preparo, sem farofa, sem técnica humanizada de abate? Elas estão vivas, pô. Mas, a essa altura, o Manuel já tinha pego uma coitada no chão, entre o indicador e o polegar e, sem pestanejar, com a outra mão, arrancava a cabeça do corpo para depois cuidadosamente descascar as antenas e as mandíbulas. O que sobrou em sua mão foi uma bolinha quase preta, a cabeça roliça da saúva.

– Cheira – ordenou o Manuel.

Igualzinho a capim cidreira, ou capim-santo como se diz ao norte.

Enfim, provei. Que delícia. Tinha um quê de pimenta–do–reino, picante, e um sabor bem parecido com cidreira, só que ainda mais vivo, mais cheio, se espalhando pela boca. Uau.

No mundo inteiro, há milênios, gente simples como o Manuel guarda os segredos das maiores iguarias que existem. Quem foi o pescador maluco no centro da Ásia que em algum momento achou que ia ser uma boa ideia meter na boca um bocado daquelas nojentas ovas pretas de esturjão? Que bravo camponês francês, destemido do cheiro de chulé, encarou aquela massa de leite embolorado e descobriu que queijo fedido é delicioso? Que doido fazendeiro italiano primeiro enfiou na boca aquelas bolas de fungo descobertas pelos porcos.

As comidas mais sofisticadas e caras do mundo têm sempre suas origens numa tradição culinária imensamente rural e popular. Claro. É em lugarejos perdidos e cercados de natureza que os homens ousam colocar na boca esquisitices nojentas que acabam se tornando a mística gastronômica de um povo.

No Brasil, tendemos a desprezar o saber popular sobre as coisas da terra. Preferimos cultuar o caviar, o rockefort ou a trufa negra, prestando homenagem ao saber ancestral de outros povos, e enviando milhares de dólares para a Europa. Isso é típico do nosso complexo de viralatas: as coisas daqui não prestam, importado é melhor.

Acontece que não é. A Amazônia é a mais potente fábrica de matéria orgânica do mundo, alimentada por uma quantidade insuperável de umidade, calor e nutrientes. Em nenhum lugar do mundo há tantos sabores, tantas esquisitices, tantas coisas para serem experimentadas. E estamos sistematicamente queimando tudo para colocar pasto no lugar.

Semana passada, por causa de um projeto jornalístico, tive uma reunião com o Alex Atala, tido como um dos maiores chefs do mundo. Ele falava de sua paixão pelas possibilidades gastronômicas da Amazônia. Uma hora ele se empolgou.

– Vem aqui. Preciso te mostrar uma coisa – ele disse

Entramos na mítica cozinha de seu restaurante, o D.O.M., e ele abriu a porta de um congelador. Lá de dentro, tirou um pote de plástico, desses de sorvete, e abriu. Olhei dentro da caixa e vi algumas centenas de saúvas engruvinhadas uma na outra. Pus uma delas na boca, e o sabor transbordante de pimenta e cidreira me transportou de volta para aquela cachoeira amazônica, perto da casa do seu Manuel.

Perguntei o que ele pretendia fazer com as saúvas.

– Não sei ainda – respondeu, cheio de mistério.

Será que vai dar tempo de sabermos? De desvendarmos o infinito potencial da floresta? De tirarmos dela os sabores do Brasil do futuro?

Já que o Brasil está tentando dar uma utilidade para a Amazônia – torná-la produtiva –, tenho um plano. Naquela área gigantesca, de 5,5 milhões de quilômetros quadrados, duas vezes maior que a Índia, poderia funcionar uma gigantesca usina.

Precisaríamos usar tecnologia sofisticadíssima para a coisa dar certo. Seria assim: haveria uma infinidade de máquinas complexas injetando água no ar. Esse movimento carregaria o ar para cima, de maneira constante. O movimento vertical puxaria o ar da região vizinha – o Oceano Atlântico. O ar oceânico viria carregado da umidade do mar. Dessa maneira, ele produziria uma violenta corrente constante de ar úmido, que entraria rasgando pelo norte do Brasil, se chocaria com os Andes, desviaria para o sul e levaria água para a América do Sul inteira.

Não é legal?

Pois então. Essa usina já está em funcionamento. É a chamada bomba biótica da floresta. “Bomba” porque bombeia água. “Biótica” porque é a vida que a produz: em especial as árvores da floresta. Quem contou essa história foi o pesquisador Antonio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, em sua palestra do TEDxAmazônia, no dia 6 de novembro.

As máquinas sofisticadas que movem a usina são os bilhões de células que compõem cada uma das bilhões de árvores da floresta. Sem que nos déssemos conta, elas já estão há milênios injetando água no ar e garantindo que a América do Sul não se transforme num deserto igual a todas as outras regiões continentais do mundo que ficam em sua latitude. É a Floresta Amazônica que garante que haja água para beber em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Buenos Aires, é ela que faz a soja e a cana crescerem em Goiás, no Mato Grosso, é ela que enche os reservatórios que faz as turbinas hidrelétricas de Itaipu e Furnas gerarem energia.

Essa dinâmica é tão complexa que só hoje nossa ciência começa a engatinhar para compreendê-la. Ainda assim, estamos seriamente empenhados em derrubar a floresta. Primeiro foi a indústria madeireira, depois os fazendeiros de soja, depois a turma do gado e os mineradores. Agora quem avança sobre a floresta são as grandes usinas hidrelétricas. Belo Monte é só a mais famosa: há mais de 50 projetos de hidrelétricas, destinadas a cada um dos grandes rios amazônicos, dentro das fronteiras brasileiras e fora delas, nas nascentes bolivianas e peruanas. Uma imensidão de floresta será alagada.

Para mim, desmantelar nossa usina de bombeamento de água para construir usinas hidrelétricas é mais ou menos como se, em algum momento das primeiras décadas do século 20, abríssemos um supercomputador, arrancássemos lá de dentro os microchips e colocássemos pistões e engrenagens no lugar. A tecnologia celular da bomba biótica é milhões de vezes mais sofisticada do que qualquer coisa que a tecnologia humana é capaz de produzir. Se tivéssemos que construir uma bomba igual à que a floresta nos dá de graça, gastaríamos muito mais energia que todas as hidrelétricas do mundo somadas. E não ficaria tão bom.

Claro que o Brasil precisa de energia elétrica para se desenvolver. Mas, antes de alagar um pedaço tão gigantesco da Floresta Amazônica, eu adoraria ter certeza de que estamos nos esforçando ao máximo para aproveitar inteiramente nosso gigantesco potencial de produzir energia do vento e do sol. Que estamos zelando para que não haja energia desperdiçada nas nossas linhas de transmissão, que contamos com uma rede inteligente e descentralizada. E, obviamente, não é esse o caso. Estamos abrindo mão de um tecão da floresta para fazer hidrelétricas sem antes fazermos todos os esforços para reduzir o desperdício, sem antes espalhar painéis solares e turbinas eólicas pelo nosso vasto território cheio de vento e sol.

A questão não é ser a favor ou contra Belo Monte. É reconhecer a importância crucial de cada centímetro quadrado da floresta e se esforçar ao máximo para que a destruição de uma única árvore seja apenas um último recurso para quando não houver mais alternativas. Não é isso que está acontecendo.

O rio-mar

Digo isso à beira do rio-mar, onde a imensidão de água doce amazônica dilui o salgado da água do mar. Estou na Ilha do Marajó, no alto de um morro junto à praia, sob o vento oceânico constante. É por aqui que as correntes úmidas que evitam que a América do Sul vire um deserto adentram o continente.

Por quanto tempo mais?

***

Termina aqui minha jornada amazônica. Volto esta semana a São Paulo. Peço desculpas por não interagir com os comentários ao longo das últimas semanas. As coisas se normalizam na semana que vem.

O caboclo Iracildo desde menino gosta de estar na floresta. Nascido à beira de uma praia de areia branca na margem do lindo Rio Tapajós, que escoa as águas do Mato Grosso até o Rio Amazonas, ele passou a vida entre o mato e o rio. Vivia do que catava, do que caçava, do que pescava. Aprendeu com a vida a sentir o cheiro do tatu, a enxergar o rastro da paca, a ver o peixe debaixo d’água, a tecer telhados e erguer paredes com folhas, fibras e madeiras, a extrair remédios e comidas da casca e da seiva das árvores. Aprendeu a ler a floresta, a enxergar sua riqueza e a viver dela.

Iracildo trabalhando

O povo do vilarejo de Jamaraquá, onde ele vive, sempre achou que Iracildo era tímido, arredio, introvertido. Ele mesmo sempre acreditou nisso: que sua vocação não era interagir com as pessoas.

Aí, uns dois anos atrás, um gringo apareceu por lá, atraído pela beleza impressionante do lugar. Andou na canoa de Iracildo e perguntou se ele não o guiaria para dentro do mato. Iracildo foi, meio envergonhado. No caminho, foi contando um pouquinho do que sabia. Para sua surpresa, o gringo adorou. Ficou de queixo caído. Para ele, aquela floresta era só uma massa verde, um matão indistinguível. Andando com Iracildo, ele percebeu que havia lá um milhão de personagens diferentes. Percebeu que havia um mundo de conhecimento sobre a floresta. E a experiência de alguém num lugar é muito mais interessante quando se conhece melhor esse lugar.

Iracildo percebeu que ele não era arredio. Ele era, isso sim, um especialista. Um conhecedor. Ele percebeu que tinha um monte de gente interessada em conhecer esse lugar e disposta a pagar a ele para que ele os ajudasse.

Hoje ele é guia. O barco que usava para pescar agora busca turistas no balneário encantado de Alter do Chão, não muito longe de Jamaraquá. Os turistas dormem em redes numa cabaninha que Iracildo ergueu com troncos e folhas de palmeira. Ele cobra de cada turista 160 reais por três dias de passeio, que incluem andar de canoa ao pôr do sol, nadar num igarapé mágico, descansar à sombra de uma samaúna gloriosa, atravessar uma mata até chegar a uma praia, três belas refeições ao dia e uma infinidade de histórias incríveis que só quem passou 52 anos na floresta sabe contar. Ele não dá conta da demanda.

Explorando uma praia do Tapajós

Na hora do almoço, na casa de Iracildo, os turistas não têm como não notar a exposição de pulseiras, colares, brincos, cadernos com capa de látex de seringueira e bolsas confeccionados pela filha dele, a Nice. As mulheres, brasileiras e estrangeiras, enlouquecem quando vêm aquilo. No meu grupo, logo no primeiro dia, vi três mulheres avançarem aos gritos sobre todas aquelas coisas bonitas. Uma gastou 45 reais, outra, 60, a outra certamente mais de 100. Quase todo dia é assim. A Nice cresceu aprendendo sobre a floresta com o pai. Seu trabalho, imensamente criativo, é todo feito com sementes, ossos, fibras naturais e borracha das seringueiras. Ela me descreveu seu processo criativo: “à noite eu imagino o que vou fazer no dia seguinte. Quando não imagino antes, não sai nada interessante”. A floresta é sua matéria-prima, mas a mágica acontece dentro da sua cabeça, quando ela mistura a criatividade com a qual nasceu com o conhecimento que herdou do pai.

Iracildo, alguns de seus filhos e netos, e parte da obra da filha mais velha

Jamaraquá fica dentro de uma Floresta Nacional, ou Flona, uma área preservada, mas na qual é permitido que as populações locais exerçam atividade econômica, desde que não destruam a floresta. No vilarejo vizinho, Maguari, há uma fábrica de produtos de látex, o chamado “couro ecológico”, que exporta bolsas, sapatos e brinquedos para a Europa. Há pela Amazônia uma infinidade de tecnologias sendo desenvolvidas para transformar conhecimento tradicional em produtos e serviços, pelos quais o mundo está ávido.

O modelo das Flonas parece imensamente promissor para a região. Em vez do xiismo dos parques nacionais, que expulsam a população local, colocam fiscalização insuficiente em seu lugar e deixam a àrea vulnerável a invasores que vêem a floresta como apenas um estoque de madeira e caça, aqui o que se vê é um estímulo ao empreendedorismo baseado em conhecimento.

O que se vê aqui é prosperidade. Jamaraquá, que até cinco anos atrás era tão pobre quanto é possível ser, hoje tem água tratada saindo da torneira, luz elétrica, loja coletiva de artesanato e uma rádio comunitária. As crianças vão estudar numa escola em Maguari e a saúde vai muito bem. A associação dos moradores é rica porque recebe uma porcentagem do que os turistas gastam, e zela pelo cumprimento das regras da Flona. Na casa de Iracildo, tem televisão e geladeira e ele está pensando em mandar construir um segundo barco, para seus filhos levarem turistas. O construtor de barcos, seu genro, também mora na comunidade. O dinheiro circula. Todo mundo parece saudável, feliz e orgulhoso.

Bem diferente do que acontece mais ao sul, no mesmo estado do Pará, no chamado arco do desmatamento. Por lá, quem manda na floresta não conhece nada dela: só vê a massa verde, como aquele gringo antes de encontrar Iracildo. A regra é derrubar tudo, o que provoca um breve crescimento econômico, quando a madeira é vendida. Mas aí a madeira acaba e grandes pastos se instalam, abrigando um boi por hectare na média. O dono do boi não tem do que reclamar, embora provavelmente faça muito menos dinheiro por hectare do que a família de Iracildo. O resto da comunidade mergulha em depressão e criminalidade.

Aqui no Brasil a gente tem a mania de achar que a fórmula do desenvolvimento está fora daqui. Nossa auto-estima é baixa, então desconfiamos do conhecimento local. Achamos que desenvolvimento é produzir vinho no sertão do São Francisco. Muito lindo plantar uva no sertão, sem dúvida um grande feito. Mas não acrescenta nada ao mundo. Contratamos especialistas franceses para nos ensinarem a fazer vinho e, ao final, temos um vinho passável, embora obviamente não tão bom quanto o francês. Temos aqui a floresta mais rica do mundo. A solução para ela não vem de fora – vem de dentro, de quem a conhece. Pergunte para os franceses se não é esse o segredo de um bom vinho. Pergunte a eles se não é esse o segredo de um bom país.

Balanço agora numa rede. À minha esquerda e à minha direita, dezenas de outras redes balançam, uma tão colada na outra que, a cada movimento, esbarro em alguém. Estou em um barco de passageiros, deslizando sobre o Rio Amazonas, cercado da floresta sem fim nas duas margens, escoltado por botos, pacientemente esperando as 36 horas que separam Manaus de Santarém passarem.

Embarquei ontem depois do almoço. Agora, 30 horas depois, o sol se põe pela segunda vez na viagem. Mas não dá para ouvir os pássaros do entardecer cantarem. Em vez deles, só o que se escuta, pelo sistema de som do barco, ligado no talo, é uma sucessão ininterrupta dos grandes sucessos do brega, do tecnobrega, do funk, do axé e do forró. Muito country music, que chegou à Amazônia junto com os bois. Alguns dos meus companheiros de viagem olham desanimados para o rio lá fora, como se contemplassem a possibilidade de se atirar na água, para escapar da tortura musical.

Fico refletindo sobre o quanto os bens mais preciosos da floresta acabam sendo desvalorizados por aqui. A quietude, por exemplo. Se estivéssemos em silêncio aqui no barco, estaríamos escutando a mais poderosa sinfonia de pássaros, sapos e cigarras do mundo, como aprendemos numa palestra memorável do TEDxAmazônia, do especialista em sons da natureza americano Gordon Hempton. Mas os amazonenses urbanos que me acompanham na viagem parecem preferir o rebolation aos sons da floresta. Não acho difícil entender isso. Por aqui vigora uma cultura de enxergar a natureza como um obstáculo, um inimigo, algo a ser superado. Encher o ar de sons eletrônicos é um jeito de afirmar a supremacia humana sobre a floresta.

Nosso barco vai singrando o maior rio do mundo e deixando atrás de si um rastro de latinhas de cerveja, garrafas pet, bitucas de cigarro, embalagens de comida que vão sendo atirados do convés sem qualquer cerimônia. A floresta lá fora é tão monumentalmente grande e infindável que muita gente parece acreditar que essas minúsculas agressões não farão nem cócegas. O resultado se vê nas cidades pelo caminho. Manaus, por exemplo, em alguns lugares lembra um depósito de lixo.

Na semana passada, em outra viagem de barco, fomos conhecer uma reserva natural, o Arquipélago das Anavilhanas, protegido por lei federal. Mal entramos nos limites do parque e ouvimos o zumbido áspero das motosserras vindo de dentro de uma das ilhas. Na água, grandes redes para pegar peixes, o que também é proibido por lá. Passamos algumas horas tentando achar um sinal de celular, para denunciar a infração. Ligamos para uns cinco números diferentes, e em cada um deles nos informaram que “não é aqui não”. Acabamos conseguindo registrar a denúncia, mas algo na voz entediada da moça que nos atendeu nos deu a sensação de que não haveria consequência alguma.

A floresta é gigante, tanto que viajar de uma cidade a outra leva 36 horas de barco ao longo dela. Ela é tão grande que parece infinita. Mas não é. Ela acaba. O silêncio acaba, a madeira acaba, a limpeza acaba.

Minha esposa passeia pelo barco e um sujeito de correntes de ouro no pescoço puxa conversa com ela. Quer saber por onde passeamos nos últimos dias. Ela diz. Ele comenta:

“Ah, vocês são daqueles ecológicos, né? Daqueles que gostam de índio?”

Ele não. Ele gosta de progresso. Índio, com essa história de conhecer e valorizar cada uma das espécies da floresta, atrapalha muito o progresso.

Nasci e cresci lá no centro econômico do Brasil. Esta semana, um trabalho me trouxe à extrema periferia do país: a floresta amazônica. Vou passar três semanas viajando por aqui e contando pelo blog das coisas que vejo pela janela, das pessoas que encontro no caminho.

Vim para cá participar da organização de uma conferência independente, o TEDxAmazônia, cujo objetivo era refletir sobre ideias que tornem a vida melhor aqui neste planeta (entenda o que é aqui). Fiz parte do grupo de curadoria do evento. Convidamos para palestrar um monte de gente do centro econômico do mundo. Nova-iorquinos, londrinos, alemães, californianos e nórdicos aceitaram empolgados o convite (apesar da nossa política de não pagar cachê para ninguém).

A conferência durou dois dias e teve um pouco mais de 50 palestrantes. Não vou nem tentar resumir aqui o que aconteceu lá – eu nem seria capaz, de tão emocionalmente envolvido que eu estava na história. Mas, ao longo do fim de semana, uma certeza foi me dominando:

Não, aqui não é a periferia do Brasil.

Não, a Amazônia não é o lugar onde nove periferias problemáticas (Bolívia, Colômbia, Venezuela, Peru, Equador, as três Guianas, Brasil) se encontram. Aqui é o centro.

É o centro climático. É o termostato que regula a temperatura do planeta inteiro. Quando a concentração de carbono na atmosfera terrestre aumenta e a temperatura sobe, a floresta, alimentada de calor e gás carbônico, cresce. E, ao crescer, captura carbono e emite oxigênio, esfriando o mundo (um efeito que obviamente anda meio prejudicado pela nossa mania de desmatar).

É o centro hídrico. É uma bomba de ar quente que faz circular uma parte enorme da umidade da Terra. Não fosse a floresta, a América do Sul seria tão desértica quanto a África e não daria para se plantar nada em Goiás ou no Mato Grosso, não daria para se viver em São Paulo, no Rio ou em Buenos Aires.

É o centro energético. É aqui que fica a grande usina do mundo: a floresta, que captura a energia do sol e produz com ela quase toda a matéria orgânica do planeta. É essa energia que move nossa sociedade.

É o centro de biodiversidade. É o grande laboratório de pesquisa e desenvolvimento da evolução, gerando uma quantidade astronômica de espécies. Numa só árvore há mais insetos do que a maioria de nós vai ter chance de ver ao longo da vida. Em 1 hectare, o tamanho de um campo de futebol, há mais espécies de árvore do que na Europa toda.

E é sim o centro econômico do Planeta Terra, não São Paulo ou Londres ou Nova York. Num mundo em que 50% do PIB é extrair e vender recursos naturais, o centro econômico não é onde estão os bancos – é onde estão os recursos naturais. São Paulo, Londres e Nova York é onde estão os atravessadores, mas a riqueza do mundo provem daqui. E vai-se embora sem deixar rastro, para irrigar o sistema econômico mundial.

A Amazônia é o centro do futuro do mundo. É onde estão as respostas para todas as nossas questões. Isso ficou claro durante a conferência, enquanto os palestrantes subiam ao palco, um após o outro – o economista, o designer tecnológico do Vale do Silício, o pensador da educação, o químico industrial alemão, a evolucionista, o ativista digital, a designer de moda, a executiva da indústria de cosméticos, os pesquisadores de felicidade da Finlândia, o ativista urbano.

Ao final do domingo, eu estava literalmente esgotado, física e emocionalmente. Foi intenso. Passei a segunda-feira balançando numa rede, com febre, me recuperando.

Por sorte, fui fazer isso na floresta. Eu estava acompanhado de um guia, o Samuel, etnicamente índio, mas que nasceu na cultura dos brancos. Seu pai, um homem culto e inteligente que fala línguas e toca violino, abandonou a tribo antes que o Samuel nascesse, em busca de uma vida melhor. Aos 13 anos, com a curiosidade alimentada pela convivência com o avô, que falava uma língua misteriosa, Samuel disse aos pais que iria tirar um mês de férias e entrou no mato perto da divisa com a Venezuela, na periferia da periferia. Bem lá no centro dela. Achou uma tribo, disse ao chefe que queria aprender a cultura deles e só voltou para casa, todo pintado e transformado, dois anos depois.

O Samuel e um outro guia incrível, o caboclo Manuel, nos ensinaram o que puderam sobre a floresta. Comemos cabeça de saúva, com gosto de erva cidreira e pimenta. Vimos como se faz corda, com a mesma fibra que está nas pastilhas de freio dos carros mais caros. Mastigamos cascas de árvore, raízes, sementes e seiva, e reconhecemos neles o gosto e o cheiro de um monte de alimentos, medicamentos e cosméticos conhecidos nossos. Ouvimos centenas de histórias que um dia ainda vou contar aqui.

É tanta riqueza.

É tanto potencial.

É o centro do mundo.

Depois dessa experiência, minha vida em São Paulo parece tão periférica.

*

(Quem quiser acompanhar o que aconteceu no TEDxAmazônia pode assistir às palestras no site. Vão subir uma por semana, ao longo de um ano inteiro).

Pessoal, estou em Manaus, balançando na rede de um barco, aproveitando um momento com sinal de celular, tentando me recuperar do trabalho intenso dos últimos dias ajudando a organizar o TEDxAmazônia, uma confêrencia de dois dias que foi o trabalho mais difícil e realizador que já fiz. Impossível escrever um post agora – meu tico não conecta com o teco, a cabeça está dando voltas. E amanhã de manhã entramos na floresta por quatro dias, provavelmente sem sinal. Escrevo o post desta semana assim que voltar ao convívio das antenas de celular, mais pro fim da semana. Fico três semanas na Amazônia, e nesse período minha pontualidade nas postagens fica menos paulista, mais amazônica. Além disso, talvez não dê para subir imagens. Para compensar estarei cheio de histórias para contar.

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Você deve estar ouvindo falar sobre o grande dilema amazônico: a necessidade de desenvolver a região não combina com a necessidade de manter a floresta em pé, essencial para evitar o aquecimento global. Pois esse é um falso dilema. Isso ficou claro conversando com o Beto Veríssimo, um dos principais cientistas da floresta, pesquisador da seríissima ong Imazon, reconhecido no mundo inteiro.

O modelo que temos hoje é ruim para a floresta e é ruim para o desenvolvimento.

É assim: está lá a floresta. Aí chegam as madeireiras, derrubando tudo. Menos de uma década depois, elas vão embora floresta adentro, em busca de mais madeira. Chega o gado, ineficiente, espalhando bois por uma área enorme. Em cinco anos, o solo está esgotado. A terra amazônica é pobre, é ruim para agricultura. Logo logo não serve nem para pasto. Mas não tem problema. Quando isso acontecer, as madeireiras já terão avançado mais, e haverá mais terra para os bois. Até que vai acabar tudo.

É óbvio que esse modelo é insustentável. O que não é tão óbvio é que ele não é nem sequer lucrativo (a não ser para uma meia dúzia de pessoas). O que a pesquisa de Beto mostrou é que esse jeito de explorar a floresta dá preju. Ele juntou um monte de dados para mostrar que, depois que esse processo começa, a região fica efetivamente mais pobre. O PIB, medida de riqueza, cai. Todos os indicadores sociais – doença, mortes, violência – pioram. O Brasil fica mais pobre.

É o que ele chamou de modelo de “boom-colapso”. Primeiro há uma sensação de desenvolvimento. Madeireiras abrem as portas, o preço da terra sobe, pessoas arrumam empregos. Aí, quando o solo se esgota, tudo fecha, todo mundo perde o emprego e o lugar fica mais pobre do que era antes. As taxas de homicídio explodem.

Como escapar desse modelo absurdo? Não é fácil. Mas o primeiro passo é parar de avançar sobre a floresta. E como parar de avançar sobre a floresta, se o incentivo da terra barata e da vigilância falha é tão irresistível? Bom, você pode ajudar. A dica do Beto:

Eu acho que você tem que evitar qualquer carne produzida na Amazônia. Com a madeira, já é possível saber a procedência e separar a madeira legal, certificada, da que destrói a floresta. Mas com a carne não. Os pecuaristas fizeram muito pouco progresso nesse aspecto. A única solução é comer apenas carne produzida em outras regiões.

E como saber se a carne que você compra vem da Amazônia ou não? É difícil, mas 3 grandes redes de supermercado (Pão de Açúcar, Carrefour e Wal Mart) já se comprometeram a não vender carne de lá. Esperemos que outros mercados e açougues sigam o exemplo, mas, enquanto isso, uma dica segura é optar por um desses 3.

Se pararmos de avançar sobre a floresta, podemos recuperar as terras já desmatadas e colocar as 80 milhões de cabeças de gado da Amazônia para pastar lá, com mais eficiência do que hoje. Fazer essa mudança vai custar caro. Mas, ao final do processo duas coisas vão acontecer: a floresta vai ser salva e o Brasil vai ficar mais rico.

Como se vê, o dilema do desenvolvimento X preservação é uma bobagem.

Foto: Ana Cotta / Flickr

Bela e completa análise da The Economist sobre o futuro da Amazônia. Termina resumindo assim a situação:

“Nesta visão da Amazônia, a floresta será preservada como um grande parque nacional com pitadas de indústria para enriquecer seus habitantes. A agricultura será mais produtiva do que é hoje, utilizando terras hoje abandonadas e aumentando a produção para suprir as demandas interna e externa sem avançar mais na floresta. Esse objetivo é plausível, e louvável, mas levará décadas para ser alcançado. No meio tempo, a floresta vai continuar a encolher. A luta hoje é para decidir o quão rápido essa destruição vai acontecer.”

A Economist cita a ótima pesquisa da ong Imazon, recém publicada numa das duas mais conceituadas revistas científicas do mundo, a Science. Pela pesquisa, o desenvolvimento na Amazônia cumpre uma triste rotina de rápidos booms de prosperidade seguidos de decadência e da volta da população à pobreza. Ou seja, a exploração, do jeito que é, além de ser absurdamente predadora, não deixa nem sinal de riqueza por onde passa. Estilo gafanhoto.

Sexta-feira vou ver o Beto Veríssimo, da Imazon, falar. Depois falo mais sobre desenvolvimento na floresta.

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Esta história é tão legal que é uma pena que seja tão raro acontecer algo assim no Brasil. Será que é a primeira de muitas? Para resumir:

Capítulo 1: o Greenpeace Brasil, depois de uma investigação séria e detalhada que levou 3 anos, divulgou no dia primeiro deste mês um relatório denunciando as empresas que indiretamente colaboram com a destruição da Amazônia ao sustentar a criação ilegal de gado. Na lista, tem um monte de marcas que você conhece. Nike, Adidas e Reebok, que compram na China couro do frigorífico brasileiro Bertin. Toyota, Honda, Ford e BMW, que compram nos EUA couro do mesmo frigorífico para bancos de carro. Boss, Louis Vuitton, Prada, Gucci, que compram o mesmo couro na Itália para fazer bolsas e sapatos. E, no Brasil, Pão de Açúcar, Wal Mart e Carrefour, que compram produtos bovinos da Bertin e também da JBS e da Marfrig, outros frigoríficos da Amazônia. Mais uma denúncia dos ambientalistas fadada a ser ignorada por todo mundo?

Capítulo 2: nananina. Uma semana depois, dia 8, a Associação Brasileira de Supermercados se reuniu e decidiu fazer alguma coisa. Em decisão conjunta, Pão de Açúcar, Wal Mart e Carrefour concordaram em, juntos, tirar seus nomes dessa lista feia. Na quarta passada, eles anunciaram que abandonariam 11 fornecedores do Pará que não conseguiam garantir que sua carne não provinha de desmatamento ilegal.

Capítulo 3: dois dias depois, sexta-feira passada, o Banco Mundial anunciou que estava cancelando seu contrato para financiar o frigorífico Bertin, maior exportador do Brasil e segunda maior empresa do setor do mundo.

Capítulos 4, 5, 6…: ficamos esperando o posicionamento das outras empresas envolvidas. Será que Adidas, Nike, BMW, Ford, Honda, Toyota também vão tomar uma providência ou vão ficar torcendo para os consumidores não ligarem para a destruição da floresta? E será que os frigoríficos envolvidos, em especial o Bertin, vão se mexer também para se adequar à lei e assim ajudar o Brasil a crescer? Não perca nos próximos capítulos.

Esta história é legal porque é uma das raras vezes em que o temor quanto a pressão dos consumidores embasou uma mudança de atitude da indústria. E também porque o Greenpeace fez o que se espera de uma ong séria: pesquisou, apurou, investigou, e assim embasou a pressão dos consumidores.

Não sou ingênuo. Eu mesmo sou executivo de uma grande empresa (a Editora Abril) e sei bem que há uma imensa pressão por resultados que faz com que se escolha sempre o fornecedor mais barato, sem se preocupar muito com o que esse fornecedor faz para conseguir preços tão baixos. As empresas só vão proceder de um jeito diferente se perceberem que os consumidores vão puni-las se elas não forem responsáveis. É bom ver que isso está começando a acontecer no Brasil. É pouco, mas é um começo.

PS: já estou até vendo os comentários que vão chegar. Gente aparentemente bem intencionada, mas desanimada, dizendo que nada disso adianta nada e que a Amazônia vai acabar de qualquer jeito. Já respondo antes que esses comentários cheguem: é essa atitude que impede a mudança de hábitos. Repito o que eu já disse uma vez: quem é cínico é cúmplice de quem tem interesse em que as coisas não mudem.