O caboclo Iracildo desde menino gosta de estar na floresta. Nascido à beira de uma praia de areia branca na margem do lindo Rio Tapajós, que escoa as águas do Mato Grosso até o Rio Amazonas, ele passou a vida entre o mato e o rio. Vivia do que catava, do que caçava, do que pescava. Aprendeu com a vida a sentir o cheiro do tatu, a enxergar o rastro da paca, a ver o peixe debaixo d’água, a tecer telhados e erguer paredes com folhas, fibras e madeiras, a extrair remédios e comidas da casca e da seiva das árvores. Aprendeu a ler a floresta, a enxergar sua riqueza e a viver dela.
Iracildo trabalhando
O povo do vilarejo de Jamaraquá, onde ele vive, sempre achou que Iracildo era tímido, arredio, introvertido. Ele mesmo sempre acreditou nisso: que sua vocação não era interagir com as pessoas.
Aí, uns dois anos atrás, um gringo apareceu por lá, atraído pela beleza impressionante do lugar. Andou na canoa de Iracildo e perguntou se ele não o guiaria para dentro do mato. Iracildo foi, meio envergonhado. No caminho, foi contando um pouquinho do que sabia. Para sua surpresa, o gringo adorou. Ficou de queixo caído. Para ele, aquela floresta era só uma massa verde, um matão indistinguível. Andando com Iracildo, ele percebeu que havia lá um milhão de personagens diferentes. Percebeu que havia um mundo de conhecimento sobre a floresta. E a experiência de alguém num lugar é muito mais interessante quando se conhece melhor esse lugar.
Iracildo percebeu que ele não era arredio. Ele era, isso sim, um especialista. Um conhecedor. Ele percebeu que tinha um monte de gente interessada em conhecer esse lugar e disposta a pagar a ele para que ele os ajudasse.
Hoje ele é guia. O barco que usava para pescar agora busca turistas no balneário encantado de Alter do Chão, não muito longe de Jamaraquá. Os turistas dormem em redes numa cabaninha que Iracildo ergueu com troncos e folhas de palmeira. Ele cobra de cada turista 160 reais por três dias de passeio, que incluem andar de canoa ao pôr do sol, nadar num igarapé mágico, descansar à sombra de uma samaúna gloriosa, atravessar uma mata até chegar a uma praia, três belas refeições ao dia e uma infinidade de histórias incríveis que só quem passou 52 anos na floresta sabe contar. Ele não dá conta da demanda.
Explorando uma praia do Tapajós
Na hora do almoço, na casa de Iracildo, os turistas não têm como não notar a exposição de pulseiras, colares, brincos, cadernos com capa de látex de seringueira e bolsas confeccionados pela filha dele, a Nice. As mulheres, brasileiras e estrangeiras, enlouquecem quando vêm aquilo. No meu grupo, logo no primeiro dia, vi três mulheres avançarem aos gritos sobre todas aquelas coisas bonitas. Uma gastou 45 reais, outra, 60, a outra certamente mais de 100. Quase todo dia é assim. A Nice cresceu aprendendo sobre a floresta com o pai. Seu trabalho, imensamente criativo, é todo feito com sementes, ossos, fibras naturais e borracha das seringueiras. Ela me descreveu seu processo criativo: “à noite eu imagino o que vou fazer no dia seguinte. Quando não imagino antes, não sai nada interessante”. A floresta é sua matéria-prima, mas a mágica acontece dentro da sua cabeça, quando ela mistura a criatividade com a qual nasceu com o conhecimento que herdou do pai.
Iracildo, alguns de seus filhos e netos, e parte da obra da filha mais velha
Jamaraquá fica dentro de uma Floresta Nacional, ou Flona, uma área preservada, mas na qual é permitido que as populações locais exerçam atividade econômica, desde que não destruam a floresta. No vilarejo vizinho, Maguari, há uma fábrica de produtos de látex, o chamado “couro ecológico”, que exporta bolsas, sapatos e brinquedos para a Europa. Há pela Amazônia uma infinidade de tecnologias sendo desenvolvidas para transformar conhecimento tradicional em produtos e serviços, pelos quais o mundo está ávido.
O modelo das Flonas parece imensamente promissor para a região. Em vez do xiismo dos parques nacionais, que expulsam a população local, colocam fiscalização insuficiente em seu lugar e deixam a àrea vulnerável a invasores que vêem a floresta como apenas um estoque de madeira e caça, aqui o que se vê é um estímulo ao empreendedorismo baseado em conhecimento.
O que se vê aqui é prosperidade. Jamaraquá, que até cinco anos atrás era tão pobre quanto é possível ser, hoje tem água tratada saindo da torneira, luz elétrica, loja coletiva de artesanato e uma rádio comunitária. As crianças vão estudar numa escola em Maguari e a saúde vai muito bem. A associação dos moradores é rica porque recebe uma porcentagem do que os turistas gastam, e zela pelo cumprimento das regras da Flona. Na casa de Iracildo, tem televisão e geladeira e ele está pensando em mandar construir um segundo barco, para seus filhos levarem turistas. O construtor de barcos, seu genro, também mora na comunidade. O dinheiro circula. Todo mundo parece saudável, feliz e orgulhoso.
Bem diferente do que acontece mais ao sul, no mesmo estado do Pará, no chamado arco do desmatamento. Por lá, quem manda na floresta não conhece nada dela: só vê a massa verde, como aquele gringo antes de encontrar Iracildo. A regra é derrubar tudo, o que provoca um breve crescimento econômico, quando a madeira é vendida. Mas aí a madeira acaba e grandes pastos se instalam, abrigando um boi por hectare na média. O dono do boi não tem do que reclamar, embora provavelmente faça muito menos dinheiro por hectare do que a família de Iracildo. O resto da comunidade mergulha em depressão e criminalidade.
Aqui no Brasil a gente tem a mania de achar que a fórmula do desenvolvimento está fora daqui. Nossa auto-estima é baixa, então desconfiamos do conhecimento local. Achamos que desenvolvimento é produzir vinho no sertão do São Francisco. Muito lindo plantar uva no sertão, sem dúvida um grande feito. Mas não acrescenta nada ao mundo. Contratamos especialistas franceses para nos ensinarem a fazer vinho e, ao final, temos um vinho passável, embora obviamente não tão bom quanto o francês. Temos aqui a floresta mais rica do mundo. A solução para ela não vem de fora – vem de dentro, de quem a conhece. Pergunte para os franceses se não é esse o segredo de um bom vinho. Pergunte a eles se não é esse o segredo de um bom país.