Houve um tempo em que o governo mandava na cultura do Brasil. Havia uma truculenta ditadura militar, que se achava no direito de decidir o que era e o que não era cultura, financiando uns e proibindo outros. O Brasil tinha, por exemplo, uma empresa estatal que produzia cinema, a Embrafilme. Tinha também um departamento de censura, ligado ao ministério da Justiça. Era um escritório surreal onde uns militares sem nenhuma qualificação passavam o dia inteiro lendo, escutando e assistindo toda a cultura produzida no Brasil, em busca de mensagens políticas e pelos pubianos.
Em 1988, durante o governo Sarney, acabou a censura. Em 1990, durante o governo Collor, acabou a Embrafilme e o financiamento público direto da cultura, como parte de um programa de “desestatização”. Aí, a cultura brasileira foi à falência. Sem dinheiro público, em meio à instabilidade econômica, sem que houvesse por aqui o hábito de financiar privadamente as artes, ficou impossível fazer qualquer coisa. Em 1992, apenas um filme foi produzido no Brasil, e ele era falado em inglês.
Foi nesse contexto, de falência da cultura brasileira, que se criou a Lei Rouanet, cujo objetivo era “educar empresas privadas e cidadãos a investirem em cultura”. Funciona assim: primeiro o criador “inscreve” um projeto na lei, enviando-o ao Ministério da Cultura. Depois que o projeto for aprovado, o criador vai procurar um patrocinador privado que tope financiá-lo. Mas aí vem o pulo do gato: esse patrocinador tem o direito de recuperar até 100% do seu investimento em isenção de impostos. Ou seja: no final a coisa sai grátis para o “patrocinador”. São as empresas que escolhem quais projetos patrocinar, elas é que expõem seus logotipos, mas quem paga é o governo, porque deixa de receber o dinheiro dos impostos (algo como 1 bilhão de reais por ano).
O absurdo desse modelo ficou claro quando o Bradesco patrocinou a primeira vinda do Cirque du Soleil ao Brasil, com dinheiro público da Lei Rouanet. O ingresso para as apresentações custavam uma pequena fortuna, algo próximo a um salário mínimo. E o Bradesco expôs sua marca em todo canto do circo, insinuando que o banco era tão forte, flexível e habilidoso quanto os artistas que se apresentavam lá. Ou seja: gastou-se dinheiro público para uma empresa privada fazer uma campanha publicitária.
Antes, eram uns milicos que decidiam a cultura brasileira. Hoje, quem decide são diretores de marketing das grande empresas, igualmente não-qualificados. Só uma coisa não mudou: o dinheiro continua vindo dos meus impostos.
Este mês, o absurdo da Lei Rouanet ficou evidente mais uma vez, quando o projeto do blog de Maria Bethânia, orçado em 1,3 milhão de reais e inscrito na lei, caiu na boca do povo. Bethânia foi linchada pela opinião pública. Não quero discutir aqui os méritos do projeto dela (que não era um simples blog e que deveria sim ter sido aprovado). Mas para mim está claro que é uma bobagem culpar Bethânia por algo que é um problema da lógica do sistema.
Já existe previsto na lei brasileira um substituto para a Lei Rouanet: é o Sistema Nacional de Cultura (SNC). Funciona assim: cada cidade ou estado brasileiro pode ter recursos públicos para financiar a cultura, desde que se organize, junte a classe criativa e faça um planejamento de 10 anos para a cultura local. As decisões não são tomadas pelo governo nem pelos diretores de marketing, mas por uma comissão em cada cidade e estado, formada por representantes tanto do governo quando da classe artística. Se o dinheiro é público, nada mais justo do que deixar que as cidades e os estados decidam como gastá-lo. O dinheiro é concedido via editais descomplicados, aos quais todo mundo tem acesso.
Acho engraçado que ninguém esteja debatendo o SNC. Fica todo mundo xingando ou defendendo a Maria Bethânia, mas ninguém foca em discutir soluções para nossos problemas sistêmicos – talvez porque nem os governos nem as grandes empresas tenham muito interesse em descentralizar as coisas. O SNC foi criado na gestão passada do Ministério da Cultura, mas nunca virou prioridade dentro do próprio governo. Agora mudou governo e mudou ministro, e até hoje não ouvi a nova ocupante do cargo, Ana de Hollanda, falar uma palavra sobre o assunto.
Acho legítimo o país decidir que vale a pena financiar a cultura com dinheiro público, já que ter uma economia criativa vibrante é bom negócio para o país, torna a população mais feliz e reforça uma clara vantagem competitiva brasileira. Acho legítima também a posição contrária: defender que não cabe ao estado financiar a cultura e que a iniciativa privada tem que assumir seu papel de mecenas. O que não faz sentido é, por medo de debatermos francamente, escolhermos um caminho que combina o pior dos dois mundos: dinheiro público financiando interesses privados.