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Arquivo mensal: maio 2010

Responda depressa: cite um exemplo de algo bom que alguém do governo fez recentemente.

Difícil, né? Difícil lembrar de uma só história.

Tente então lembrar o nome de um servidor público que seja honesto, que tenha ideias inteligentes e inovadoras e que esteja empenhado em melhorar o país.

Lembra algum? Um nome só?

Aposto que não.

Talvez isso queira dizer que, no Brasil, todos os funcionários públicos e políticos são imbecis completos e corruptos em potencial. Mas, honestamente, eu não acho que seja isso (até porque, na posição de jornalista, já conheci dezenas e dezenas de funcionários públicos que me pareceram bastante inteligentes, honestos e idealistas). Eu acho que isso revela uma doença da nossa sociedade.

Nós, brasileiros, gostamos mesmo é de nos achar espertões, malandrões. Então a gente nunca elogia ninguém, nunca aponta um bom exemplo – e se houver um defeito que não estou vendo e eu passar por ingênuo depois? No final, isso cria um desincentivo para gente talentosa se arriscar no serviço público. Para quê? Para virar saco de pancadas?

Na minha carreira de executivo, eu aprendi uma ou duas coisas sobre administração de recursos humanos. Aprendi que, se queremos ter uma equipe motivada, é importante avaliar o desempenho e conversar sempre sobre as falhas de cada um, com foco em corrigi-las. Mas, acima de tudo, é fundamental celebrar os acertos, elogiá-los publicamente, criar um ambiente em que todos os funcionários saibam o que se espera deles e sintam-se motivados a ousar, a inovar, a tentar algo novo.

Pois fazemos o contrário disso na maneira como avaliamos nossos servidores públicos. Quando eles erram, nós descascamos os caras, caímos matando, fazemos piada, fazemos os sujeitos se arrependerem de ter tentado. Nada de discutir o que poderia ter sido melhor – muito mais fácil e divertido é ridicularizar o que saiu errado. Quando eles acertam, na melhor das hipóteses, nós ignoramos. Na pior das hipóteses, nós damos um sorrisinho cínico e fazemos uma insinuação maldosa (e sem provas) sobre as reais motivações deles. “Devem estar levando algum por fora…”

Não estou aqui sugerindo que todos nós banquemos os polianas. É óbvio que espírito público é produto meio raro aqui na terrinha, não nego. Mas vivemos um período em que precisamos, mais do que qualquer outra coisa, de inovação. O mundo está mudando de maneira quase cataclísmica, e isso significa que precisaremos reinventar nosso sistema político, nossos modelos de produção, de consumo, de trabalho, nossos estados, nossas escolas, nossa economia, nossas leis. Esse trabalho de reinventar coisas já é difícil normalmente, e torna-se quase impossível num ambiente conservador, em que as pessoas têm medo de tentar, de ousar, de experimentar.

Precisamos aprender a celebrar os bons exemplos. Não porque precisemos de heróis, mas porque precisamos de gente motivada tentando fazer o melhor e acreditando na importância do seu trabalho.

Ser cínico é fácil prá caramba. Rir dos outros não oferece nenhum risco (a não ser a de um eventual – e merecido – tapa na cara). Mas elogiar exige coragem.

Foto: carderel (CC)

Alvo?

Passa carro, passa carro, passa carro, passa carro, passa carro, passa carro, passa carro, passa carro. Abre pro pedestre, corre, 2, 1, 0. Passa carro, passa carro…

Saiu hoje na Folha que o pedestre tem em média 15 segundos para atravessar uma avenida. Está muito claro que as ruas são dos carros. Pedestres podem usá-las comedidamente, mas apenas se prometerem não atrapalhar.

15 segundos para atravessar significa que, ainda que você esteja muito atento e coloque o pé na rua no mesmo segundo em que o sinal abrir, terá que andar a 1,2 m/s para chegar do outro lado antes que o sinal abra – 50% mais rápido que a dita “velocidade de caminhada” (que é 0,8 m/s). Ou seja, há que correr. O pessoal da Companhia de Engenharia de Tráfego diz que é “mais que suficiente”. Verdade. Dá tempo. Desde que o sujeito esteja atento. Desde que ele se mova rápido. Desde que o motorista respeite o sinal. O que nem sempre acontece.

Em 2009, o trânsito de São Paulo matou 1.382 pessoas. Só 222 eram motoristas. 671 eram pedestres. A maioria deles morreu em cima da faixa de pedestres. 30% das vítimas eram idosos, cuja velocidade é menor. Morre mais gente no trânsito do que por homicídio na cidade. Homicídios tendem a se concentrar na população de jovens adultos homens. Já as mortes no trânsito costumam privilegiar os mais fracos: idosos e crianças entre eles.

A gente está cansado de ouvir essas estatísticas. Cansado de ouvir comparações estapafúrdias. Que o trânsito de São Paulo mata mais em 4 meses do que toda a Guerra do Golfo matou nas forças ocidentais. Que mata mais do que o conflito da Palestina. Mata mais do que malária e dengue somados matam no Brasil inteiro.

Levando-se tudo isso em conta, não é curioso que a gente continue achando que o problema do trânsito é apenas sua lentidão? Os jornais diários e as revistas (incluindo a Vejinha) sempre fazem matérias sobre os buracos no asfalto, mas raramente comentam os buracos nas calçadas. Os projetos da prefeitura visam a aumentar o fluxo de carros. Só.

A prefeitura de São Paulo acabou de anunciar que, a partir de 2012, vai acabar com as vagas de estacionamento no meio fio. Motoristas vão ter que parar em estacionamentos fechados. Para quê? Para aumentar o fluxo de carros.

Ok, é óbvio que os carros precisam andar. Mas será que o foco não deveria ser diminuir a quantidade de carros? E se o prefeitura pegasse um quinto do espaço liberado no meio fio e criasse ciclovias? Isso faria as ruas infinitamente mais seguras para ciclistas. Certamente haveria uma explosão das bicicletas na cidade e o número de carros diminuiria (hoje, com o caos atual, já há mais gente se deslocando de bicicleta do que de táxi).

Tenho ouvido sugestões ainda mais criativas. Por exemplo: e se a prefeitura desse descontos no preço do aluguel de quem morar perto do trabalho? Assistencialismo!, já ouço berrarem. Na verdade não: é um jeito de economizar dinheiro público. Investir em diminuir os deslocamentos na cidade sai mais barato do que construir metrô.

E, ainda que não saísse… Por que é que o trânsito, que mata mais brasileiros do que a aids, a diarreia ou o câncer de pulmão, não vira prioridade para a saúde pública? Como é que o carro, que mata mais que o revólver, não tem seu uso controlado?

Foto: yuri__lima (Flickr / CC)

Talvez você conheça a sensação. Caminhar pelos bulevares de Paris, fazer uma pausa num café, sentar num banco de praça, ver a vida passar, os senhores elegantes carregando baguetes no sovaco, as moças lindas pedalando bicicletas coloridas. Ou sei lá: caminhar pelas avenidas de Nova York, entre galerias de arte e lojas de design. Pelos becos e pontes de Veneza. Pelas ruas de pedra de Roma. Mas… Caminhar em São Paulo?

Aqui não, óbvio. Aqui não é Paris. Aqui se vive a vida, se paga as contas, se anda com pressa. De carro. Janela fechada. Insulfilm. E, se alguém distrair na nossa frente, buzina nele.

Anteontem, resolvi ser turista em São Paulo. Eu e minha esposa, a Joaninha, pegamos nossas bicicletas e fomos para o centro. Era noite de Virada Cultural. Para quem não é daqui, explico: trata-se de um evento incrível, que já acontece há 6 anos. As ruas do centro são fechadas para os carros, dezenas de palcos são montados e, por 24 horas, da tarde do sábado à tarde do domingo, a cidade é tomada por música e arte e festa.

São Paulo, vista com olhos de turista

Joaninha e eu curtimos a festa até dar sono. Aí procuramos um hotel e nos hospedamos. Acordamos de manhã, passeamos um pouquinho a pé, tiramos fotos, vimos shows, comemos em restaurantes tradicionais, sentamos em bancos de praça. E voltamos para casa como quem tivesse passado um fim de semana em… Sei lá… Paris?

Havia 4 milhões de pessoas na festa (segundo os números oficiais, dos quais duvido um pouquinho). Todo mundo a pé. Como acontece todo ano, a Virada me encheu de esperança de que São Paulo tenha jeito.

Mais do que tudo, andar pelas ruas bloqueadas para o trânsito deixa uma coisa clara: é impressionante o mal que os carros fazem à cidade. Com eles, não dá para ser feliz nas ruas: as buzinadas, a fumaceira e a constante possibilidade de ser atropelado não deixam. E aí fico pensando nas melhores cidades do mundo… Nas grandes capitais europeias os carros estão em minoria no meio de gente caminhando. Nos EUA, a cultura do carro é mais forte. Mas, não por acaso, as duas cidades mais agradáveis – Nova York e San Francisco – são justamente as duas que são exceção a essa regra e que mais impõem limites aos motoristas. (Já sei o que vão dizer: que Paris e Nova York têm transporte público decente, enquanto SP praticamente nos força a usar carro. Mas, com os corredores de ônibus e as novas linhas do metrô, isso não é mais tão verdade assim).

Por mim, São Paulo não precisa de mais faixas na Marginal. Precisa é cobrar pedágio de quem entulha a rua com carros. Precisa é radicalizar a opção por transporte público: reduzir à metade as faixas para carros individuais, aumentar o espaço dos ônibus, das bicicletas, dos pedestres.

No final da tarde de domingo subimos a ladeira para a Paulista e de lá morro abaixo para Pinheiros, onde moramos. Foi um choque reencontrar os motoristas espaçosos, indignados com as bicicletas que ocupam uma faixa inteira da avenida. Fiquei pensando… Quantos deles adoram passar as férias em Paris? Por que é que a gente admite viver bem nas férias, mas não se permite nem sonhar com uma vida decente aqui na nossa cidade?

Foto: Joana Amador (CC)

– É uma criança tão boa, tão obediente!

O equívoco começa bem cedo na vida. Desde a primeira infância, a criança aprende a acreditar que ser “bom” é sinônimo de ser “obediente”. Mas não é. Aliás, muito longe disso. Quem quer realmente ser bom necessariamente vai ter que desobedecer autoridades em algum momento da vida.

Prova disso é o clássico Experimento de Milgram, conduzido em 1964 nos EUA. A ideia foi do psicólogo Stanley Milgram, que queria estudar a propensão humana a obedecer a autoridade, mesmo quando isso implica em ser cruel com outros seres humanos (Milgram estava interessado em entender como Hitler foi capaz de mobilizar milhões de pessoas comuns no seu projeto genocida).

Foi um experimento engenhoso (e que hoje certamente seria considerado antiético). Começou com a publicação de um anúncio num jornal pedindo voluntários para um estudo sobre memória e aprendizado.

Os voluntários que se candidataram foram recebidos por um cientista de jaleco branco que explicou o experimento. Eles teriam que se sentar em frente a um vidro e operar uma máquina cheia de botões. Do outro lado do vidro, haveria outro voluntário, um senhor afável, que teria que decorar e repetir uma série de palavras. A cada palavra errada, o voluntário teria que apertar um botão, e o senhor do outro lado do vidro levava um choque. A cada erro, o choque ficava 15 volts mais forte. No final, o senhor dava gritos desesperados e dizia que ia morrer porque tinha um problema cardíaco. Os choques eram fortíssimos e o botão continha avisos de que havia risco de vida.

Bom, nada disso era verdade. Não havia choque nenhum. O senhor era um ator que errava por querer. O objetivo do experimento não era medir aprendizado, mas descobrir se as pessoas seguiriam ordens mesmo com um sujeito estrebuchando de desespero. Resultado: a imensa maioria segue ordens.

65% das pessoas administrou o choque até o limite máximo, de 450 volts. Todos os voluntários se sentiram incomodados e quiseram parar o experimento quando os gritos começaram, lá pelos 300 volts. Quando eles faziam isso, o cientista de jaleco reagia com dureza, dizendo que eles precisavam continuar, que não havia perigo e que eles tinham concordado com as regras do experimento (muito embora todos eles tenham sido avisados no começo de que poderiam parar se quisessem).

Uns poucos reagiram à autoridade e disseram que parariam mesmo assim. Mas a grande maioria obedeceu. O interessante é que, nesse ponto, eles deixaram de se incomodar com o outro. Alguns até começaram a demonstrar uma certa raiva sádica ao apertar o botão. A presença da autoridade como que “desligou” a culpa deles, o senso de responsabilidade sumiu. A partir da bronca do cientista, quase todos estavam dispostos a tudo. E, se o senhor afável morresse… Ora, não foi culpa minha, eu estava só cumprindo ordens.

Outro psicólogo famoso, que aliás estudou com Milgram na mesma escola do Bronx, em Nova York, é Philip Zimbardo, ainda ativo na Universidade Stanford (Milgram morreu em 1984). Zimbardo é autor de outro estudo clássico (igualmente questionado pela ética científica de hoje), o Stanford Prision Experiment. Ele recrutou garotos para fazer o papel de guardas e prisioneiros numa prisão fictícia. Em poucos dias, os guardas tinham virado torturadores covardes e os prisioneiros estavam tendo colapsos nervosos.

Zimbardo, comentando o experimento de Milgram, costuma dizer que o que o mundo precisa é de mais heróis. Só que, para ele, “herói” não é necessariamente alguém inalcançavelmente generoso, que entrega a vida a uma causa, como Gandhi ou Martin Luther King. Herói, para ele, é gente comum, que leva sua vida, mas que, quando vê algo errado acontecendo, tem coragem de dizer não (veja a palestra de Zimbardo no TED aqui).

No experimento de Milgram, algumas pouquíssimas pessoas se recusaram a dar choques, levantaram-se indignadas e saíram gritando que não participariam mais daquilo. Quando isso acontecia, todos os outros voluntários na sala recusavam-se também a continuar. Um único herói, provou-se então, tem o poder de catalisar uma reação positiva enorme.

A questão é que, quando educamos nossas crianças apenas para serem obedientes, a chance de elas agirem com heroísmo quando a oportunidade aparecer é minúscula. Crianças boas são aquelas que, quando chega a hora de escolher entre o certo e o errado, são capazes de desobedecer.

O capitalismo não é o inimigo.

O inimigo, como eu já falei outras vezes, é uma certa mentalidade, e essa mentalidade é dominante tanto entre os “neoliberais” quanto entre os “comunistas”. “Capitalismo e socialismo são irmãos”, me disse numa entrevista semana passada o Secretário do Verde e do Meio Ambiente de São Paulo, Eduardo Jorge. Irmãos, filhos da mesma herança cultural, com a mesma visão de mundo, que Jorge define assim: “há o econômico e há o social, que precisam ser equilibrados. Os recursos naturais são inesgotáveis e existem unicamente para dispormos deles infinitamente, seja para o econômico, seja para o social”. Esquerda quer que a balança penda pro social, direita puxa pro econômico, mas as duas estão igualmente erradas no essencial: os recursos não são infinitos.

A coisa central que precisa mudar, para a conta fechar, é essa crença que nós temos entranhada de que é preciso crescer sempre. Se a economia brasileira era de 1 trilhão em 2005, precisa ser de 1 trilhão e tanto em 2006, e precisa crescer todo ano para sempre. Veja bem, não me entenda mal. Não estou dizendo que crescer seja ruim. É bom, óbvio, e crescimentos precisam ser celebrados. Mas o financismo da nossa cultura impõe mais que isso: ele quer que crescimento seja a regra geral do mundo. Tudo tem que crescer sempre, todo ano. As empresas estabelecem metas de crescimento, e essas metas tendem a ser mais agressivas a cada ano. Muita empresa se exige crescer 20% de um ano para o outro, até 30%. E aí elas se medem por esse crescimento. Se crescer só 15%, não vai haver celebração: vai haver demissões, tristeza e suicídios eventuais.

Essa agressividade das metas acaba significando que muitos funcionários de grandes empresas privadas acabam se comportando mais ou menos como batedores de carteiras. Eles saem às ruas com os olhos furiosos, inventam esquemas intransparentes de empurrar produtos, disfarçam gato de lebre, lucram vendendo o que deveria ser de todos. Há uma imensa agressividade no nosso jeito de atuar no mundo, e a humanidade fica meio parecida com gafanhotos: uma espécie que se espalha rápido e que, assim que chega aos lugares, seca tudo, come tudo, caga tudo e vai embora para outro lugar.

"O sorriso do gafanhoto", de e-du (CC).

"O sorriso do gafanhoto", de e-du

Mudar essa crença de que o crescimento é eterno é duro. Eu sei bem. Luto contra isso todo dia. Fui criado nessa cultura, vivo sob essa lógica, no fundo tenho dificuldade de escapar dela. Sou um sujeito competitivo. Saí da faculdade, fui trabalhar numa corporação, virei madrugadas, meu colesterol subiu, minhas pálpebras tremiam. Pouco depois dos 30, eu era um executivo bem pago, que fazia algumas dezenas de milhões de reais por ano para o meu chefe, ganhava bônus todo ano e dirigia um carrão, com a gasolina “por conta”. No processo, eu vi como as coisas funcionam. Vi a pressão por transformar em dinheiro qualquer asset que me caísse na mão, fosse ele renovável ou não: credibilidade, qualidade, saúde, recursos naturais. Vi como era difícil resistir a essa cultura, por mais que as pessoas sejam decentes e bem intencionadas (e, na empresa onde eu trabalhava, eu estava cercado de gente decente e bem intencionada).

Ano passado, pedi demissão, porque fui acometido da certeza de que é preciso mudar de lógica. Vou te dizer: meu colesterol não baixou nem minha pálpebra parou de tremer. Continuo vira-e-mexe perdendo o sono com preocupações. Sabe por quê? Porque, embora racionalmente eu saiba que estou fazendo a coisa certa, meu cérebro, moldado pela lógica do crescimento eterno, vive me perguntando “mas será que você não se precipitou, Denis?” Embora eu saiba que dirigir aquele carrão com gasolina “por conta” era insustentável e fazia minha barriga crescer, de tempos em tempos meu cérebro viciado pega no meu pé (geralmente é quando eu estou me espremendo num ônibus). Embora eu saiba que eu não preciso acumular tanto, morro de medo de faltar, e se acontecer isso, e se acontecer aquilo?

Enfim, não são só as empresas e os países que querem crescer todo ano. São as pessoas também. Todo mundo acha que merece ganhar mais este ano que no ano passado. Parece que ninguém percebe que as vidas mais incríveis e marcantes são aquelas que têm altos e baixos.

Foto: e-du (CC)