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Oceano

No convés do Farley Mowat, há uma "parede de troféus": cada bandeira representa um baleeiro cuja carreira a Sea Shepherd encerrou. A foto é do grande Ignacio Aronovich.

No convés do Farley Mowat, há uma "parede de troféus": cada bandeira representa um baleeiro cuja carreira a Sea Shepherd encerrou. A foto é do Ignacio Aronovich – clique nela para ver uma outras.

Faz pelo menos 5.000 anos que o homem caça baleias. No início, era uma atividade alucinantemente perigosa. Os homens numa canoa precária, a lança na mão, o gigante surpreendido em meio à sua migração anual. Era uma luta entre homem e baleia – às vezes um ganhava, às vezes ganhava o outro. Não por acaso, era cercada de rituais de agradecimento aos deuses, de respeito e de mitos.

Há registros ancestrais dessa luta em vários cantos do mundo: entre os inuits, os patagônicos, os chineses, japoneses, noruegueses, russos, portugueses, bascos. Geralmente caçava-se baleia franca.

Em inglês, baleia franca chama right whale, ou “baleia certa”. Baleia certa para matar. Certa porque tinha o imprudente hábito de viajar perto da costa, portanto ao alcance dos precários botes humanos. Certa porque era gigante – os adultos têm entre 11 e 18 metros, e já se registrou indivíduos de 100 toneladas –, e portanto uma luta rendia carne para um vilarejo inteiro. Certa porque, quando morre, flutua. Outras espécies gigantes, como as baleias-azuis, as cinzentas e as jubartes, afundam. Imagine a frustração dos primeiros humanos que mataram uma baleia-azul, o maior ser vivo que já existiu sobre a Terra, com até 170 toneladas, para depois descobrir que jamais seriam capazes de mantê-la na superfície.

No século 19, a caça à baleia virou empreendimento gigante, industrial. Barcos e mais barcos foram lançados à água, primeiro para varrer as baleias francas de perto de seus vilarejos, depois, quando elas começaram a desaparecer dessas águas, para vasculhar os oceanos mais remotos do mundo, em busca de francas e cachalotes, outra espécie que não afunda.

Acontece que baleias têm um baixíssimo potencial reprodutivo. Em outras palavras: elas têm poucos filhos. Na média, uma fêmea tem menos do que um filhote por ano. Se houver um monte de pigmeuzinhos pendurados em barcos matando baleias, essa taxa de natalidade é insuficiente para repor a população. Resultado: francas e cachalotes começaram a desaparecer. A indústria baleeira começou a quebrar, a pesca rareou, a tradição milenar começou a se extinguir.

Foi aí, lá por 1860, que surgiu um dos grandes heróis da indústria pesqueira e da era industrial: Svend Foyn, um capitão baleeiro norueguês. Foyn foi o inventor do arpão explosivo. Funcionava assim: um canhão disparava um arpão acoplado a uma granada. O arpão perfurava a cabeça da baleia, a granada explodia por dentro. A baleia era imediatamente puxada para perto do barco, onde um marinheiro aguardava com uma mangueira de ar comprimido. O ar era injetado na baleia. De repente, as baleias azuis, cinzentas, jubartes (e as pequenas minkes, que os japoneses caçam hoje na Antártica) não afundavam mais.

A moribunda indústria baleeira milagrosamente renasceu. Milhares de pessoas fizeram a vida e acumularam fortunas matando baleias. O homem desbravou o mundo, descobriu a Antártica, navegou cada metro quadrado do oceano, em busca de baleias. Até que, pouco depois da metade do século 20, baleias azuis, cinzentas e jubartes começaram a acabar também, e mais uma vez a indústria despencou.

Conto esta história porque, desde a semana passada, não consigo tirar as baleias da cabeça (em parte porque li o lindíssimo livrinho Pawana, do Nobel de Literatura Le Clézio, o relato de uma “lenda verdadeira” sobre baleias, que você deveria ler também). Conto essa história também porque ela me faz pensar no momento atual. Tem gente hoje que afirma que não deveríamos nos preocupar com as mudanças climáticas, porque o homem sempre foi capaz de encontrar soluções tecnológicas para seus problemas, e continuará sendo.

Soluções tecnológicas são ótimas para aumentar a eficácia e a eficiência das nossas operações – o arpão explosivo de Foyn, por exemplo, multiplicou em várias vezes o “estoque” de baleias no oceano, fazendo com que uma indústria decadente prosperasse por mais um século. Mas arpão nenhum fez efeito nos anos 1960, 1970 e 1980, quando a caça de baleias despencou de novo. É que, dessa vez, não havia mais espécies intocadas para descobrir: todas as espécies grandes estavam ameaçadas. Nem o mais poderoso arpão explosivo do mundo será capaz de matar baleias se não houver mais baleias no mar.

O livro de Le Clézio, lindo.

O livro de Le Clézio, lindo.

Nesta época do ano, é inevitável para mim lembrar do reveillon de 2003, o mais incrível da minha vida, que eu passei no lugar mais remoto e selvagem do mundo, os mares da Antártica, a uma semana de viagem da cidade mais próxima. Eu estava num velho navio pesqueiro, sujo e enferrujado, cercado de icebergs esculturais, visitado todos os dias por pinguins, focas, orcas e baleias – várias espécies de baleias, inclusive uma das 10 000 baleias-azuis que sobraram nos oceanos do mundo. Vendo auroras austrais, mergulhando na água gelada, convivendo com gente incrível, cercado de beleza e paixão. Foi incrível, épico, lindo. E assustador.

A foto é do grande Ignacio Aronovich, fotógrafo que viajou comigo. Dê uma olhada no site dele e da Louise, mulher dele: é um dos melhores sites de fotografia que eu conheço.

A foto é do grande Ignacio Aronovich, fotógrafo que viajou comigo. Dê uma olhada no site dele e da Louise, mulher dele: é um dos melhores sites de fotografia que eu conheço.

Fui para a Antártica como repórter, a convite de uma organização eco-radical chamada Sea Shepherd. Um ano antes, eu tinha entrevistado o fundador da organização e capitão do navio deles, Paul Watson. Ele me contou que sempre sonhara em ir para a Antártica, um dos únicos lugares do mundo onde ainda se mata baleias em larga escala. Paul Watson e sua Sea Shepherd tinham no currículo o afundamento de 10 baleeiros, desde 1979, quando eles trombaram propositalmente com o baleeiro pirata Sierra na costa de Portugal. Durante a entrevista, eu tive certeza de que havia uma grande história aí, e fiquei no pé de Watson até ser convidado para a primeira campanha antártica da Sea Shepherd. Consegui.

Passamos seis semanas no mar. A campanha foi um fracasso. Não encontramos os baleeiros, que se moviam rápido demais para o nosso navio, o Farley Mowat, um calhambeque marinho construído em 1958 e comprado usado por algumas dezenas de milhares de dólares.

Semana passada, Watson e a Sea Shepherd apareceram nas notícias de novo – como aliás sempre acontece nesta época do ano, que é quando os japoneses caçam baleias. Mais uma vez, como acontece todos os anos desde 2003, eles foram para a Antártica incomodar os baleeiros. Só que, desta vez, em vez de pilotar uma lata velha, eles tinham três barcos, sendo que um deles era um ultra-moderno trimarã movido a diesel que vale 1,5 milhão de dólares e mais se parece o batmóvel – chamado Ady Gil, em homenagem ao milionário de Hollywood que doou a maior parte do dinheiro. Você deve ter visto as notícias. O Ady Gil trombou com um dos baleeiros japoneses e afundou. Desta vez os baleeiros ganharam.

httpv://www.youtube.com/watch?v=pBKYjHUUN4Q

[No vídeo, a imagem da esquerda foi feita por ambientalistas em outro barco. A da direita, que dá a sensação de que a culpa foi dos próprios ambientalistas, foi tomada pelos próprios baleeiros japoneses.]

Watson afunda baleeiros porque diz que eles agem ilegalmente. Realmente, há, desde 1987, um tratado internacional que proíbe a caça a baleias no mundo inteiro. Mas há uma exceção: é permitido matar baleias para pesquisa científica. E, uma vez mortas, é permitido vender a carne das baleias, para não desperdiçar. Os japoneses criaram seu “programa de pesquisas” em 1987, mesmo ano em que a moratória começou. Como é essa “pesquisa”? Mata-se o bicho, estuda-se seu ouvido e o conteúdo do estômago e intestino, empacota-se a carne e vende-se em peixarias. Trata-se de um estudo de seus “hábitos alimentares”. Para fazer isso, mata-se 900 baleias por ano.

Enfim, o tal “programa de pesquisa” não passa de um pretexto. E ninguém faz nada, porque a Antártica fica em águas internacionais e não existe polícia lá. Ninguém é responsável pelo planeta: os governos só têm jurisdição sobre seus próprios países.

Watson tem todos os defeitos que dizem que ele tem. Ele mente com alguma frequência, é meio arrogante, é difícil de lidar, não é nada diplomático, é marketeiro até a medula. Ele me odeia – ficou bravo com alguns trechos do livro que escrevi sobre a expedição. E ele arrisca: um sujeito que já afundou dez baleeiros não tem muito o que dizer quando finalmente é um barco dele que vai parar no fundo.

Mas tenho que admitir que, no fundo do coração, tenho uma baita admiração pela sua coragem sem limites. E uma baita saudades da Antártida, o último lugar do mundo que ainda não foi inteiramente transformado em “estoque” de algum produto.

aguasvivas

Águas-vivas gigantescas, do tamanho de geladeiras, infestaram a costa do Japão. Eram tantas, e tão imensas, que foi preciso fechar temporariamente algumas usinas nucleares que abastecem Tóquio de eletricidade. Navios, usinas de dessalinização e mineradoras também já tiveram que parar suas operações para limpar suas entradas de água, entupidas de águas-vivas. Na Irlanda do Norte, em novembro de 2007, uma invasão de pequenas águas-vivas deixou a água vermelha. Ao longo da costa norte-irlandesa, populações inteiras de salmão morreram sufocadas.

Muito se fala do quanto as mudanças climáticas prejudicam espécies mundo afora. Mas nem todo mundo é prejudicado pelas temperaturas mais altas e pelo clima mais imprevisível e violento. Algumas espécies se dão muito bem. Mosquitos, por exemplo. Baratas adoram. E, ao que tudo indica, águas-vivas também.

É o que eu descobri numa reportagem assustadora publicada na revista Earth Island Journal, cuja sede fui visitar na semana passada em Berkeley, Califórnia. A matéria diz que, na verdade, ninguém tem certeza de que águas-vivas estão mesmo proliferando – basicamente porque não tem jeito de contar esses bichos quase invisíveis que passam parte de suas vidas escondidos no fundo do mar na forma de pólipo. Suas populações variam demais naturalmente. Mas todo mundo que acompanha-os de perto concorda que as infestações catastróficas, como as descritas acima, estão ficando cada vez mais frequentes.

Não faltam razões para isso:

  • Elas gostam de água quente. Tradicionalmente proliferam em águas tropicais. E o aquecimento global está tropicalizando o mundo.
  • Elas competem contra os peixes por plâncton. Como estamos acabando com os peixes, elas fazem a festa.
  • O homem criou várias “zonas mortas” no mar. São bocas de rio, que desembocam um monte de poluição. Essa poluição faz proliferarem algas, que tapam a luz do sol e matam o fitoplâncton. Sem fitoplâncton, os peixes morrem ou mudam. Essas “zonas mortas” são dominadas por águas-vivas, que prosperam sem competição.

Enfim, o clima é um sistema complexo. Quando se altera um sistema complexo, como a humanidade está fazendo agora, há um monte de consequências, algumas delas totalmente imprevisíveis. Parece que a proliferação de águas-vivas vai ser uma delas, para azar dos peixes e dos banhistas.

Enquanto isso, um chef sino-britânico chamado Joe Lai desenvolve receitas com águas-vivas. Segundo ele, elas são altamente protéicas, mas quase não têm gordura. Enquanto não descobrirmos um jeito de eliminarmos a causa da praga das águas-vivas – o efeito estufa – só nos restará aprender a comê-las.

Foto: tirei no aquário de Monterey, Califórnia