Faz pelo menos 5.000 anos que o homem caça baleias. No início, era uma atividade alucinantemente perigosa. Os homens numa canoa precária, a lança na mão, o gigante surpreendido em meio à sua migração anual. Era uma luta entre homem e baleia – às vezes um ganhava, às vezes ganhava o outro. Não por acaso, era cercada de rituais de agradecimento aos deuses, de respeito e de mitos.
Há registros ancestrais dessa luta em vários cantos do mundo: entre os inuits, os patagônicos, os chineses, japoneses, noruegueses, russos, portugueses, bascos. Geralmente caçava-se baleia franca.
Em inglês, baleia franca chama right whale, ou “baleia certa”. Baleia certa para matar. Certa porque tinha o imprudente hábito de viajar perto da costa, portanto ao alcance dos precários botes humanos. Certa porque era gigante – os adultos têm entre 11 e 18 metros, e já se registrou indivíduos de 100 toneladas –, e portanto uma luta rendia carne para um vilarejo inteiro. Certa porque, quando morre, flutua. Outras espécies gigantes, como as baleias-azuis, as cinzentas e as jubartes, afundam. Imagine a frustração dos primeiros humanos que mataram uma baleia-azul, o maior ser vivo que já existiu sobre a Terra, com até 170 toneladas, para depois descobrir que jamais seriam capazes de mantê-la na superfície.
No século 19, a caça à baleia virou empreendimento gigante, industrial. Barcos e mais barcos foram lançados à água, primeiro para varrer as baleias francas de perto de seus vilarejos, depois, quando elas começaram a desaparecer dessas águas, para vasculhar os oceanos mais remotos do mundo, em busca de francas e cachalotes, outra espécie que não afunda.
Acontece que baleias têm um baixíssimo potencial reprodutivo. Em outras palavras: elas têm poucos filhos. Na média, uma fêmea tem menos do que um filhote por ano. Se houver um monte de pigmeuzinhos pendurados em barcos matando baleias, essa taxa de natalidade é insuficiente para repor a população. Resultado: francas e cachalotes começaram a desaparecer. A indústria baleeira começou a quebrar, a pesca rareou, a tradição milenar começou a se extinguir.
Foi aí, lá por 1860, que surgiu um dos grandes heróis da indústria pesqueira e da era industrial: Svend Foyn, um capitão baleeiro norueguês. Foyn foi o inventor do arpão explosivo. Funcionava assim: um canhão disparava um arpão acoplado a uma granada. O arpão perfurava a cabeça da baleia, a granada explodia por dentro. A baleia era imediatamente puxada para perto do barco, onde um marinheiro aguardava com uma mangueira de ar comprimido. O ar era injetado na baleia. De repente, as baleias azuis, cinzentas, jubartes (e as pequenas minkes, que os japoneses caçam hoje na Antártica) não afundavam mais.
A moribunda indústria baleeira milagrosamente renasceu. Milhares de pessoas fizeram a vida e acumularam fortunas matando baleias. O homem desbravou o mundo, descobriu a Antártica, navegou cada metro quadrado do oceano, em busca de baleias. Até que, pouco depois da metade do século 20, baleias azuis, cinzentas e jubartes começaram a acabar também, e mais uma vez a indústria despencou.
Conto esta história porque, desde a semana passada, não consigo tirar as baleias da cabeça (em parte porque li o lindíssimo livrinho Pawana, do Nobel de Literatura Le Clézio, o relato de uma “lenda verdadeira” sobre baleias, que você deveria ler também). Conto essa história também porque ela me faz pensar no momento atual. Tem gente hoje que afirma que não deveríamos nos preocupar com as mudanças climáticas, porque o homem sempre foi capaz de encontrar soluções tecnológicas para seus problemas, e continuará sendo.
Soluções tecnológicas são ótimas para aumentar a eficácia e a eficiência das nossas operações – o arpão explosivo de Foyn, por exemplo, multiplicou em várias vezes o “estoque” de baleias no oceano, fazendo com que uma indústria decadente prosperasse por mais um século. Mas arpão nenhum fez efeito nos anos 1960, 1970 e 1980, quando a caça de baleias despencou de novo. É que, dessa vez, não havia mais espécies intocadas para descobrir: todas as espécies grandes estavam ameaçadas. Nem o mais poderoso arpão explosivo do mundo será capaz de matar baleias se não houver mais baleias no mar.