Meu vizinho estava com muito calor neste verãozão pelo qual passamos. Ele resolveu então comprar um aparelho gigantesco de ar condicionado, desses que ocupam uma parede inteira. Instalou o trambolho de frente para a minha janela. O dia inteiro, agora, aqui na minha casa, fica aquele vrrrrruuuuu. Da minha janela, a vista é uma grelha de metal preto. 24 horas por dia a minha sala é preenchida pelo ar quente que o aparelho tira da casa do vizinho. Minha casa virou um inferno.
Pergunta: meu vizinho tem o direito de fazer isso?
A história é fictícia, graças a deus. Mas não tanto. Quando saio à rua, que também é minha casa, já que é sustentada com o dinheiro dos meus impostos, o que vejo é basicamente a mesma coisa.
As ruas estão tomadas de carros, que são caixas de metal sobre rodas. Para que as rodas deslizem melhor, a prefeitura da minha cidade (com o dinheiro dos meus impostos) arrancou toda a vegetação e despejou por cima da terra um pixe grosso e negro.
Óbvio que, neste sol tropical daqui, não é muito agradável ficar dentro de uma caixa de metal sobre pixe endurecido, na barulheira do motor. Para aliviar esses problemas, há uma porção de soluções tecnológicas: ar condicionado, portas e janelas vedadas, vidros escurecidos, sistema de som. Com isso, o ambiente dentro da caixa de metal fica agradável, fresco e silencioso. Mas na rua aqui fora (minha casa, mantida com o dinheiro dos meus impostos), o inferno reina. O barulho, a fumaça e o calor ficam para fora, comigo.
Estamos acostumados com isso. Cidades são dominadas por carros em todo lugar e sempre foi assim, portanto não cabe questionar. Certo?
Errado.
Nem sempre foi assim: na verdade essa é uma onda muito recente, começada nos anos 1960. Também começou nos anos 1960 um aumento mundial da criminalidade nas ruas, das doenças respiratórias, das mortes violentas, do consumo de drogas como o crack e de outros sintomas da morte dos espaços públicos. Será que é coincidência? Eu acho que é consequência direta da infeliz escolha de fazer espaços para os carros.
E não é em todo lugar que isso acontece. Há pelo mundo um bom número de cidades que resistiu ao domínio dos carros e criou espaços públicos que priorizam as pessoas: Copenhague, Amsterdam, Paris, São Francisco, Melbourne são algumas delas.
Leio aqui no jornal de hoje que o prefeito de São Paulo está com um mega plano para aumentar a velocidade do trânsito da cidade. Aviso desde já: eu me recuso a seguir este plano. Vou desobedecê-lo, civicamente. Não reconheço um sistema que, embora pago com o meu dinheiro, não me consulta e não me leva em conta.
A cidade é minha, mano. Tenho direito de viver bem nela.
PS: a propósito: minha colega Natália Garcia, que trabalhou comigo na criação do site !sso Não É Normal, está com um projeto de passar um ano viajando por 12 cidades do mundo construídas para as pessoas – um mês em cada uma. A ideia é montar um grande banco de conhecimento sobre soluções urbanas. O projeto será financiado coletivamente, através de doações feitas neste site aqui. Se você se importa com isso, doe. Cada vez mais tenho a convicção de que só assim se vai mudar a lógica das coisas. A prefeitura não dá a mínima para os paulistanos. A universidade – igualmente financiada com a minha grana – não oferece alternativa nenhuma porque é refém da mesma lógica (a USP tem muito mais área dedicada a estacionamentos do que a laboratórios). Resta financiarmos a nós mesmos para conseguirmos o que queremos.