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Ideias

Em 1967, um pesquisador fez um experimento clássico da história do comportamento animal. Ele colocou três grupos de cachorros em três jaulas separadas. Uma era o grupo-controle, onde nada acontecia. Nas outras duas, o cientista aplicou choques elétricos dolorosos nos cachorros – naqueles tempos, os cientistas não davam muita bola para os direitos dos animais. Em cada uma das duas jaulas, havia uma alavanca. Numa delas, quando os cachorros batiam na alavanca, o choque parava. Na outra, não. O choque parava e recomeçava, mas sem que os cachorros tivessem qualquer controle.

Isso não vai dar certo

Aí, num segundo momento, os coitados dos cachorros foram colocados numa sala com uma cerca baixa e de novo receberam choques. Dessa vez, era fácil escapar da dor: bastava pular por cima da cerca e os choques paravam. Os cachorros do grupo-controle e os que, na primeira fase do experimento, ficaram na sala onde a alavanca funcionava, escaparam tranquilamente da tortura. Os que estavam na sala onde a alavanca não funcionava, no entanto, ficaram estendidos no chão, ganindo, levando um choque atrás do outro, sem se mover. Eles tinha aprendido a não ter esperança.

A teoria da “learned hopeleness” (desesperança aprendida), elaborada pelo psicólogo americano Martin Seligman a partir desse experimento, foi muito citada ontem em Washington no Transparency Camp, uma conferência da qual eu participei que discutia transparência pública e participação cívica. Estávamos conversando sobre esse senso de apatia que domina a política no mundo. Por toda parte (inclusive aqui na área de comentários deste blog), se ouve com frequência comentários do tipo “isso nunca vai mudar, as pessoas são más, a política nunca vai funcionar, não adianta querer fazer as coisas de um jeito diferente, qualquer tentativa de transformar o mundo é ingenuidade”. Isso é “desesperança aprendida”. Puxamos tanto as alavancas sem ver as coisas fundamentais mudarem que ficamos como os cachorros da última sala: deitados no chão, deprimidos, achando que no final vai dar tudo errado.

Isso me faz pensar no tema da pesquisa que estou fazendo agora: política de drogas. Oitenta anos atrás, um grupo de idealistas utópicos com inspiração religiosa, movidos pela boa intenção de tentar acabar com o sofrimento causado pelas drogas, resolveu inventar um sistema ultra-radical para lidar com esse problema: a proibição. Eles puxaram as alavancas, proibiram as drogas e nada mudou: o sofrimento continuou. Ao longo das décadas, o que eles fizeram foi tornar o projeto deles cada dia mais radical: a cada década gastou-se mais com armas e prisões para acabar com as drogas. Quanto mais radical a proibição, maior o sofrimento, maior o consumo de drogas, mais problemas eram causados por elas.

A proibição falhou, obviamente. Todos os países do mundo tentaram, nenhum conseguiu. Mas nossa sociedade está tão tomada por um senso de “desesperança aprendida” que não há espaço para ideias. Só o que é permitido é mais do mesmo. Os defensores do radicalismo da proibição bloqueiam qualquer tentativa de discutir o assunto e de chegar a uma política menos ingênua para lidar com as drogas. É proibido discutir, é proibido debater, é proibido propor, é proibido pensar. Só o que se permite é ficar deitado no chão, ganindo. Pior, quando alguém tenta dar alguma ideia nova, a matilha de cachorros deprimidos parte para cima, a dentadas.

Aprendi cedo na carreira a lógica da lealdade. Eu era um repórter jovem numa publicação pouco rentável quando um executivo agressivo “tomou o poder” por lá. Bateu de frente com a cultura antiga e começou a demitir os chefes, um por um. As demissões foram duras, e deixaram bastante gente deprimida. À mim foi dito que eu poderia ficar, se quisesse. Por semanas, dormi mal, enfrentando o “dilema de lealdade” que me foi imposto. Ficar ou sair definiria quem eu era, no que eu acreditava, em que lado eu me posicionava diante das coisas da vida (por exemplo: era a hora de escolher se eu era de direita ou de esquerda).

Esse tipo de dilema acontece na vida de muita gente, quase todo mundo. Em algum momento da carreira, seja no mundo privado, seja no estatal, seja em instituições religiosas ou em organizações da sociedade civil, chega um dia em que ele se impõe. É uma espécie de rito de passagem da vida adulta: o fim das crenças ingênuas da juventude, o momento em que você abre mão das suas próprias ideias e se torna “leal” a alguém, a um grupo, a uma ideologia.

A lógica da lealdade é cômoda, porque nos dispensa de pensarmos por nós mesmos. No momento em que nos alistamos nas fileiras de alguém, fica fácil navegar pela vida: basta seguir o que o grande líder diz para todas as coisas e tudo ficará bem. A vida sem grande líder nos impõe questionamentos constantes sobre todas as coisas, o que às vezes cansa.

Mas essa lógica é muito ineficaz em momentos de crise sistêmica, como a que o mundo está vivendo na atualidade. Crise sistêmica é quando o sistema que regula as coisas para de funcionar. É o que está acontecendo agora (vide mudanças climáticas, crise de confiança na economia, desmoralização do sistema político, carros que andam na velocidade de galinhas, enchentes, deslizamentos, crise energética, fim das florestas, escalada das extinções etc.).

A lógica da lealdade é uma lógica conservadora, de defesa das instituições. É ela que diz “é assim que fazemos as coisas por aqui”, em vez de permitir que se pense no problema. É a lógica da máfia: aquela que diz “não importa se você está certo ou errado, importa se está conosco ou contra nós”.

Não é disso que precisamos neste momento da história. Precisamos de mais gente inquisitiva, perguntadora, inovadora, criativa, questionadora, independente.

Não estou aqui dizendo que todos devamos ser desleais. Lealdade é um valor indiscutivelmente positivo. Mas não podemos abrir mão de nossas capacidades críticas  e dos nossos valores em nome de lealdades corporativas ou pessoais. Não devemos lealdade a ninguém. Nenhum partido político, ou empresa, ou emprego, ou associação, ou sindicato, ou síndico, ou diretoria, ou governo, ou time de futebol tem direitos sobre nossas opiniões. E eles só podem cobrar obediência de nós se entregarem alguma coisa boa em troca. Se queremos consertar os sistemas, o primeiro passo é abri-los. Sua vida é sua, cuide dela. Menos patrulhamento, mais ideias. E não vem querendo mandar em mim.

Feio o título que eu dei para este texto, não é? Incomoda. Talvez você esteja até meio indignado com a falta de educação deste colunista. Como assim “merda”? Merda não se escreve num respeitado veículo de imprensa. Não se deve falar uma palavra mal-cheirosa dessas em público.

Pois eu acho que o mal-estar que essa palavra gera é sintoma de uma dificuldade da sociedade contemporânea em lidar com um assunto fundamental: os nossos resíduos. Merda é uma coisa tão feia que, hoje em dia, na nossa sociedade, o tratamento padrão para lidar com ela é despejar 15 litros de água limpa em cima dela para levá-la para bem longe de nós. Enquanto isso, 4,5 milhões de crianças morrem todos os anos por falta de acesso a água limpa. E é claro que os 15 litros não fazem o cocô desaparecer. No geral, aqui no Brasil e na maior parte do mundo, ele é levado para algum rio ou para o mar, onde vai sujar mais água ainda.

O químico alemão Michael Braungart, coautor do livro Cradle to Cradle, que já citei aqui, costuma dizer que “estamos na merda porque não ligamos para a merda”. Quando ele diz que “estamos na merda”, isso deve ser compreendido de maneira bem literal. É exatamente o que está acontecendo. Nossa civilização está soterrada em cocô e em lixo, porque obviamente produzimos essas coisas todos os dias e acumulamos resíduos num ritmo absurdo. Um pedaço cada vez maior do planeta está sendo inutilizado para dispormos os excrementos do nosso sistema de produção.

Para efeito dramático, Braungart, quando falou no TEDxAmazônia, levou com ele uma cadeira, sentou-se e, antes de começar a falar, cerrou os dentes e encarou o público como se estivesse fazendo força.

No livro, Braungart conta que, na China antiga, era considerado falta de educação jantar na casa de alguém e ir embora sem antes fazer cocô lá fora. Isso seria roubar os nutrientes da casa do seu anfitrião. Por conta disso, todo chinês tinha um sistema de compostagem, no qual os excrementos da casa eram tratados de maneira a retirar os compostos orgânicos, que depois alimentariam a plantação para alimentar novos hóspedes.

Parece meio absurdo pensar que um sistema desses pudesse funcionar no mundo atual, povoado por 7 bilhões de pessoas que vivem amontoadas. Mas tem gente boa dedicada a imaginar essa possibilidade. O pessoal do Ipec, o Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado, em Pirenópolis, Goiás, desenvolveu um banheiro de compostagem que funciona muito bem e não exala cheiro algum. O Boom Festival, de Portugal, um dos maiores festivais de música eletrônica da Europa, usa esses banheiros do Ipec, em vez dos imundos banheiros químicos dos nossos festivais.

Hoje em dia, com essa nossa paranóia de mandar a merda para longe de nós, nós desperdiçamos um monte de nutrientes. Isso traz duas consequências. 1) o interminável acúmulo de lixo do qual já falei. E 2) há cada vez menos nutrientes disponíveis para nós. Um estudo recente citado no livro “Em Defesa da Comida”, de Michael Pollan, comparou a quantidade de micronutrientes em uma maçã de hoje e uma de 1940. Resultado: para obter a mesma quantidade de nutrientes de uma maçã de 70 anos atrás, você teria que comer três maçãs hoje.

Pois então: merda não é assunto para se varrer para baixo do tapete. É para ser discutido abertamente, sem preconceito. O primeiro passo talvez seja perder o medo de pronunciar essa palavra. Merda, merda, merda, merda.

Andei pensando mais no assunto do último post e cheguei à conclusão de que não me fiz claro o suficiente, como comprovam os comentários do Oswaldo e do sinisorsa, que leram no meu texto um monte de coisas que eu não escrevi. Achei que valia falar mais um pouquinho da polêmica do WikiLeaks, para me explicar melhor.

Primeiro: no fundo, no fundo, não tem nada de realmente avassalador nos documentos diplomáticos vazados. Embaixadores são seres humanos. Uns são inteligentes, interessantes. Outros são bestas quadradas. Nada daquilo é fato comprovado: são apenas opiniões de gente comum sobre os países do mundo, no geral formadas a partir de uma pesquisa medíocre. Eventualmente tem lá alguma informação interna reveladora, mas a grande maioria do conteúdo não surpreendeu ninguém. Os documentos vazados são apenas comunicações entre diplomatas americanos e Washington. Enfim, fofoca. Chavez é isso, Dilma é aquilo, Afeganistão é isso, China é aquilo. Em parte, isso explica o sucesso: as pessoas adoram fofocas. Virou uma espécie de BBB cujos personagens são os maiores líderes políticos do mundo. Quem não quer saber de uma fofoca sobre esse pessoal? Se envolver o Lula então, aí o povo faz a festa: a turma adora fofocas sobre o Lula (seja a favor ou contra, a audiência sempre dispara). Enfim: o conteúdo que está sendo vazado pelo WikiLeaks não é assim tão fundamentalmente importante, como aliás escreveu o Marcelo Coelho na Folha de ontem.

Segundo: o que é importante sim é o fato disso estar sendo vazado. Nascemos em um mundo acostumado às salas fechadas. É universalmente aceito o fato de que os diplomatas circulam numa esfera distante das vistas da população. Eles lidam com questões importantes, logo é de se esperar que o que eles discutem nas reuniões não tenham que ir parar nos ouvidos do mundo. É assim, sempre foi assim, espera-se que seja sempre assim. De repente uma tonelada dessas informações secretas vaza. Isso de repente muda dramaticamente as expectativas da população mundial. De uma hora para a outra, eu e você começamos a nos perguntar: “e se não fosse assim?”. E se os debates fossem públicos? E se houvesse menos assimetria de informação? E se o cidadão da China, do Afeganistão, do Brasil ou da Suécia fossem claramente informados das opiniões dos Estados Unidos e vice-versa? Não seria melhor? Afinal, se não tem nenhuma grande surpresa nos documentos, se aquilo é assim tão banal, porque então classificar como “secreto”? Por que não abrir tudo? É essa a discussão que se coloca. (E vale dizer: acho sim que há argumentos legítimos contra a transparência em certas ocasiões, como muito bem escreveu o pesquisador de Harvard Lawrence Lessig num artigo clássico no ano passado – veja na página 26 desta revista digital.)

Terceiro: não estou defendendo o Assange nem atacando os Estados Unidos. Não defendo ditadores nem justifico a existência de hackers. Caramba, é incrível como a ideologia do esquerdo-direitismo (ou direito-esquerdismo, é a mesma coisa), aquele pensamento dos anos 80 que diz que o mundo é dividido entre bons e maus, está entranhada em qualquer debate. Não tenho menor interesse em defender ou atacar ninguém. Nem conheço esse pessoal. Só quero discutir os sistemas, as ideias, as mudanças que estão acontecendo no mundo. Isso sim é interessante.

Eu acho que gastamos tempo demais discutindo as coisas erradas. Por exemplo, para muita gente, não existe assunto mais importante na política do que decidir se preferimos um “estado grande” ou um “estado pequeno”. Estado grande cobra muito imposto e está muito presente na vida do país. Estado pequeno tem poucos impostos, poucos funcionários e influi pouco no dia-a-dia dos cidadãos, deixando as decisões importantes para o mercado. Pois então. Acho uma bobagem ficar discutindo essas coisas.

Não que não seja importante. É claro que é. Claro que há diferenças entre aqueles que acham que nosso bem estar é obrigação do governo e os que acreditam que é tarefa de cada um. Mas tem 1 trilhão de coisas mais importantes que isso e, enquanto gastamos nossos neurônios brigando pelo tamanho do estado, deixamos de prestar atenção nessas coisas que importam mais.

Qual é a solução para o Brasil? Um estado grande ou um estado pequeno?

Sei lá, pouco me importa. Precisamos é de um estado que funcione. Precisamos é mudar a cultura do serviço público. As pessoas lá precisam entender que não são seres humanos mais importantes por trabalhar para o estado: pelo contrário, são servidores cuja existência precisa ser dedicada a atender os outros. Precisamos é de gente comprometida, inovadora, criativa, que dê valor para o suado dinheiro dos impostos e passe os dias tentando fazer com que ele renda mais serviços para a população. Precisamos é que os governos valorizem os bons funcionários e que eles tenham carreiras recompensadoras e desafiadoras.

No Brasil todo há cartazes como esse em repartições públicas: advertindo as pessoas de que é crime agredir servidores. Isso deve querer dizer algo sobre a qualidade dos serviços e a frustração que eles causam...

Pegue o problema da educação, por exemplo. Como é que reduzir o estado ajuda a resolvê-lo? Vamos privatizar escolas, demitir professores, vender edifícios? Isso vai tornar a educação melhor? E como é que um estado grande resolve o problema? Será que a solução é simplesmente comprar mais equipamentos, construir mais prédios, aumentar os salários? Eu acho que não.

Eu acho que um problemão desses só se resolve:

1) com diálogo. Com os “de esquerda” e os “de direita” sentando-se numa mesa e buscando juntos novos jeitos de fazer as coisas que impliquem em mais resultados e menos custos. Às vezes, eles vão concluir que tal problema se resolve com mais estado, às vezes vão diminuir o estado para diminuir o problema: decidir de antemão se o estado deve ser grande ou pequeno reduz a flexibilidade para atacar problemas específicos.

2) com criatividade. A maior parte dos problemas sérios que existem não se resolvem jogando dinheiro neles. Boas soluções muitas vezes são mais baratas do que o jeito antigo de fazer as coisas.

3) com autonomia. Enquanto os políticos desperdiçam tempo discutindo se o estado deve ser grande ou pequeno, as pessoas realmente importantes no sistema – no caso da educação, os professores – não têm a menor autoridade para inovar, para experimentar, para utilizar o aprendizado do dia-a-dia no sentido de melhorar as coisas. Nosso estado é imensamente hierarquizado e centralizado, mas é nas pontas que as transformações acontecem.

Eu topo viver num estado grande, no qual pago bastante imposto e em troca recebo um serviço público primoroso. Eu topo viver num estado pequeno, que me desonere e me dê liberdade para ser produtivo. Mas estou cansado de viver num país onde pago uma nota de imposto e ainda tenho que ter plano de saúde, pagar caro pela escola e me aborrecer toda vez que preciso do governo. É essa a discussão que importa.

Não estou acostumado a ser vip. Apesar de trabalhar há anos “na mídia”, como se diz, jornalistas que escrevem sobre ciência, ideias e meio ambiente, como eu, geralmente não recebem muitos convites. Nada que se compare àqueles que escrevem sobre consumo (moda, carros, entretenimento, essas coisas que fazem a roda da economia girar).

Talvez seja sinal dos tempos o fato de que usufruí do meu primeiro convite vip esta semana. Foi lá no festival de rock SWU, sigla de starts with you, “começa com você”, um evento internacional que foi licenciado no Brasil. Como é um festival “sustentável”, além de convidar patrocinadores, artistas, diretores de marketing, publicitários, jornalistas de cultura, os organizadores resolveram incluir a “turma da sustentabilidade” na lista vip.

Este que vos fala inclusive. Fui lá falar no tal “fórum de sustentabilidade”, que incluía um monte de empreendedores sociais e inovadores em geral. No resto do festival, eu pude circular para lá e para cá com um crachá que trazia o adesivo “backstage” no verso. Com esse crachá, os seguranças me deixavam entrar em qualquer lugar: atrás dos palcos em meio aos músicos, numa área cercada de grades junto ao palco, com visão privilegiada dos shows, ou até na “tenda do Eduardo Fischer”, nomeada em homenagem ao publicitário que organizou a festa, um espaço confortável, cheio de sofás, com uísque 12 anos, caipirinhas, canapés deliciosos e, supremo luxo, banheiros de verdade.

Foi estranho. Foi a primeira vez que vi um mega show desses do lado mais verde da cerca. Pude ficar colado ao palco, enquanto os simples mortais lá trás se espremiam numa grade. Lembrei envergonhado do ódio que eu tive por esses executivos arrumadinhos em shows como o dos Rolling Stones, na praia de Copacabana, em 2006, com 1 milhão de pessoas na praia e algumas centenas de vips à sua frente, os únicos com direito de enxergar o palco. Na época, sugeri lançar a campanha “acerte um vip”, com latinhas de cerveja. Ah, o radicalismo da juventude. E agora aqui estava eu, mastigando sashimi, de caipirinha de frutas vermelhas na mão, todo sorridente.

Foi bizarro também. Havia tantos vips que às vezes se formavam filas deles. Como todo mundo na fila era vip, isso dava origem a uma guerra de carteiradas, todo mundo furando a fila com a justificativa de ser vip, sem se dar conta de que todos na fila eram vips.

O Brasil é o país dos vips. Como estamos acostumados a sermos o país mais desigual do mundo, achamos normal que haja uma elitezinha minúscula cercada por uma imensa ralé. Ao longo da história, nos tornamos especialistas em erguer grades vigiadas por seguranças truculentos separando uns dos outros. Estamos na ponta em termos de tecnologia de segregação. Claro que, nesse clima, todo mundo quer ser vip. Ninguém quer ter o azar de ir parar do lado errado da cerca. Por conta disso, quem conhece os executivos que distribuem crachás vips cultiva com cuidado essas relações. Isso dá um poder imenso.

O Brasil está mudando. Milhões de pessoas estão ascendendo socialmente, o que vai lentamente superlotando as áreas vips. Talvez esteja chegando a hora de elas serem abolidas de uma vez. A hora de tratar bem o público inteiro e de permitir que quem chegar antes ao show possa escolher o melhor lugar. A hora de respeitar a audiência pela sua humanidade, e não pela cor do seu crachá. Isso sim seria um festival “sustentável”.

Qualidade de vida, alguém aí é contra?

Claro que não.

A própria palavra “qualidade” denota algo que é melhor quanto mais houver. Ouve-se de tudo nesses dias de hoje: defender redução do crescimento, do estado, do consumo, da automatização, da alimentação, dos gastos, do trabalho, do ritmo. Mas ninguém defende redução na qualidade de vida.

Por outro lado, está para existir expressão mais escorregadia que essa. “Qualidade de vida” é um conceito mais gasto do que sola de Conga. Papo de publicitário querendo vender para você uma área verde cercada de muros eletrificados, com meninos de rua, fumaça e trânsito te esperando do lado de fora.

Por causa disso, a expressão parece não significar mais nada. “Qualidade de vida” é um conceito tão vago e subjetivo que tornou-se inútil. É uma frase vazia e brega, como “coração partido” ou “flechado pelo cupido”. Esqueça a qualidade de vida.

Mas isso é uma loucura, se você for pensar bem. Afinal, por mais que o conceito seja subjetivo, você sabe muito bem o que ele quer dizer. Pense na sua própria vida. Muito provavelmente você vai conseguir lembrar de épocas em que ela estava boa e outras épocas em que estava piorzinha.

Se você estava envolvido em algum grande projeto, foi bom. Se morreu alguém querido, foi ruim. Se você estava muito próximo de bons amigos, foi bom. Se você perdeu o emprego ou a namorada, foi ruim. Se as pessoas estavam respeitando você e querendo saber o que você pensava, foi bom. Se seu emprego era repetitivo e entediante, foi ruim. Se era criativo e recompensador, foi bom. Você sabe do que estou falando.

Não dá para por um número na qualidade de vida, como dá para por no PIB. Mas, ainda que não tenha número, é sim uma coisa real, concreta.

Há muita pesquisa científica sobre qualidade de vida. Sabe-se com um grau de segurança bastante razoável que tipo de coisa melhora a vida das pessoas e que tipo de coisa piora (os exemplos logo acima são reais). Sabe-se, por exemplo, que consumir não melhora muito a qualidade de vida. “Buscar felicidade no consumo é como urinar nas calças para se aquecer num dia frio de inverno: provê apenas uma breve sensação de calor ”, diz o Manifesto pela Política da Felicidade, da organização de pesquisa independente Demos, da Finlândia.

Hoje, a imensa maioria das pessoas que administram o mundo ignoram flagrantemente essas pesquisas. Nunca leram nada disso. São absolutamente ignorantes no assunto. Mas sabem medir o PIB que é uma beleza.

Isso precisa mudar.

Qualidade de vida para todos os seres é o tema que foi proposto para a conferência TEDxAmazonia, que vai acontecer no mês que vem num auditório flutuante no Rio Negro, perto de Manaus. Estou trabalhando na equipe colaborativa de curadoria que montou a programação da conferência. Está ficando muito legal. Se você quiser participar, pode se inscrever até domingo no site www.tedxamazonia.com.br. A entrada no evento é grátis e a hospedagem também: só tem que pagar a passagem para Manaus. Mas a seleção é rigorosa, porque as vagas são poucas. Boa sorte.

Semana passada mandei aqui pelo blog uma carta aberta ao prefeito Kassab. Era uma ideia para ele: um projeto de transformação urbana para São Paulo. Poxa, Gilberto, você não vai responder minha cartinha? Não vai escrever? Não vai mandar notícias?

Brincadeiras à parte, é óbvio que não fiquei surpreso com a falta de resposta do prefeito da maior cidade do país. Era isso mesmo que eu esperava: o silêncio. É esse o costume neste país: governantes não conversam com a sociedade sobre ideias (se eu fizesse uma denúncia pessoal, aí sim certamente receberia uma resposta).

Exemplo do que estou dizendo está na campanha eleitoral em curso. Os candidatos estão o tempo todo na TV pedindo o seu voto, mas quantos deles estão propondo um diálogo sobre ideias? Quantos deles estão dispostos a ouvir sugestões da sociedade, da academia? Quando muito, eles prometem fazer isso, construir aquilo, mas não se trata aí de discutir ideias. Os candidatos falam como quem conhece todas as respostas, com o tom de quem sabe a verdade. Eles não querem dialogar: querem apenas nos convencer de que os sabichões são eles.

Aí o debate político fica miserável de pobre. E o único assunto no qual a maioria dos candidatos fala é “eficiência”. Lógico que não sou contra eficiência. Seria muita burrice da minha parte se eu fosse: pago um terço do meu salário em impostos e recebo um serviço porco em troca. Mas eu preferia ver políticos propondo novos jeitos de fazer as coisas, em vez de apenas fazerem auto-elogios na linha “eu faço melhor”.

Outro dia falei aqui sobre a necessidade de termos um país mais criativo. Alguns leitores comentaram dizendo que criatividade é para o setor privado, ao setor público não cabe inventar nada. Pois discordo imensamente. Verdade: precisamos sim reduzir corrupção e aumentar eficiência. Mas, mais do que tudo, precisamos criar condições para um governo que saiba inventar.

Trânsito de SP: o que é mais fácil? Asfaltar mais ou arrumar uma solução criativa?

A falta de criatividade do poder público brasileiro custa imensamente caro para o Brasil. Quer um exemplo? Os governos sabem construir ruas, avenidas e viadutos. Mas não sabem criar sistemas inteligentes de sinalização. As ruas brasileiras são labirintos confusos, cheios de gente perdida. Garanto para você que uma equipe criativa multidisciplinar, sem asfaltar um centímetro quadrado das cidades, seria capaz de melhorar o fluxo do trânsito, melhorar a experiência de se locomover, tornar as pessoas mais móveis e mais felizes nas ruas.

Outro exemplo: quando se fala sobre energia no Brasil, a única conversa é sobre construir novas usinas. Mas o estado é incapaz de soluções criativas que reduzam consumo, incentivem as pessoas a produzir energia em pequena escala, a diminuir desperdício. Caramba, quase todo o país ainda toma banho com chuveiro elétrico! Se fizéssemos um esforço criativo para mudar isso poderíamos reduzir tanto o consumo nacional de energia que daria para vender Itaipu pro Paraguai. Mas alagar um teco da Amazônia é mais fácil.

Mais do que tudo, a falta de criatividade do país é um imenso desperdício de dinheiro porque torna o serviço público mortalmente chato. Ambientes criativos atraem gente produtiva, jovem, talentosa. Ambientes burocráticos não. Ambientes criativos são divertidos para se trabalhar – tão divertidos que nem precisam pagar tão bem para atrair talentos.

Lógico que há exceções. Há nos governos um monte de ilhas de talento e criatividade. Mas são ilhas, não é a regra. Se fossem, se os governos tivessem normalmente o hábito de discutir ideias e de trabalhar para efetivamente melhorar a vida das pessoas, todo mundo ia querer participar do trabalho de governar. Se todo mundo participasse, economizaríamos dinheiro e criaríamos um ambiente em que seria muito mais difícil roubar, porque todo mundo estaria atento.

Poxa, prefeito, discutir ideias vale a pena. Responde minha carta, vai!

Você conhece o clichê, claro. Esta aqui é a terra da criatividade. Aqui fazemos diferente. Sabemos misturar, temos flexibilidade, jogo de cintura, malemolência, isquindô, telecoteco, balacobaco.

Mas, então, por que é que nossa economia, mesmo nestes tempos de prosperidade, é tão imensamente dependente do menos criativo dos setores: o das commodities?

No país de Garrincha, criatividade ainda é vista como algo próximo da inconsequência

Commodities são produtos em estado bruto ou muito pouco industrializados. São padronizados, para que possam ser comercializados nas Bolsas em grandes quantidades. Não importa de onde as commodities vêm. Não importa se o sujeito que a produziu é criativo. Só o que importa é baixar custos, melhorar processos. Commodity é tudo igual. O Brasil é o rei das commodities: petróleo, café, suco de laranja, minério de ferro, soja, alumínio e muito mais.

Este mês, o editor da excelente revista Monocle, o canadense Tyler Brûlé, esteve em São Paulo e reclamou da falta de criatividade da economia brasileira. Cadê as marcas brasileiras? “Petrobras e Vale não chegam ao consumidor final europeu e americano e muita gente acha que a Embraer é alemã. Chegou a hora de vocês irem além das Havaianas”, disse ele na ocasião.

Veja bem. Não se trata de ser contra as commodities. Ainda bem que o Brasil é rico delas. Foi essa riqueza que fez a balança comercial pesar para o nosso lado, inundando o país de dólares e dando origem à atual prosperidade.

Mas apostar todas as fichas em commodities é arriscado e ineficaz. O metro quadrado dedicado às commodities agrícolas tem rentabilidade baixíssima. Esse mesmo espaço poderia dar muito mais dinheiro para muito mais gente se fosse dedicado a uma finalidade criativa, que “agrega valor”, em língua de gente de negócios. Já as commodities minerais, incluindo o petróleo, dão bastante dinheiro. Mas, em compensação, são imensamente voláteis e expõem a economia à instabilidade, além de degradar o ambiente brutalmente.

Fico aqui me perguntando porque é que um país tão conhecido por sua criatividade está construído em bases tão pouco criativas. Tenho uma teoria. Acho que o Brasil sempre desconfiou de sua criatividade. Os políticos e os empresários sempre viram criatividade mais como um risco do que como um valor. O foco deles sempre foi “cortar as asinhas dos criativos”, uniformizar processos, padronizar.

Isso acontece tanto no setor público quanto no privado. Um e outro são autoritários, burocratizados e tornam a vida de quem quer inovar um inferno. Falo de camarote. Já trabalhei fazendo serviço criativo para governos e grandes empresas. Tanto uns quanto outras têm sistemas – diferentes mas igualmente eficazes – montados para matar ideias novas.

Nas empresas privadas é essa mania de querer ver uma “referência” antes – só se implanta um projeto se você mostrar que alguém já fez parecido em algum país desenvolvido. Garante-se, assim, que nada novo surgirá aqui.

Nos governos são as regras de contratação, super rígidas, super desconfiadas. Regras criadas para evitar corrupção, mas que matam qualquer possibilidade de fazer coisas de um jeito diferente. Para completar, além da dificuldade de contratar, demitir é quase impossível, matando a renovação e acomodando a força de trabalho.

A sociedade, de certa maneira, compactua com isso. A imprensa, por exemplo, só sabe bater em quem propõe um jeito diferente de fazer as coisas. Os jornais estão cheios de matérias irônicas criticando políticos ou servidores públicos que propõem políticas fora do convencional. Por todo lado se reproduz a ideologia do “sempre foi assim então só pode ser assim”.

Para mim, o salto do desenvolvimento do Brasil só vai se dar no dia em que este país estiver cheio de pequenos grupos criativos, multidisciplinares, informais e ágeis, inventando coisas novas à revelia da velha classe dirigente de políticos e empresários engravatados. Só no dia em que houver aqui uma agricultura criativa, uma indústria criativa, um serviço público criativo, cidades criativas, uma economia criativa. Aí sim, o Brasil será um país criativo.

Eu tenho falado de passagem nas últimas semanas de como poderia ser um novo modelo de produção, que substitua o atual, que obviamente está falido. Hoje eu quero entrar um pouco mais fundo nessa discussão. Mais uma vez, vou citar o livro “Cradle to Cradle” (“berço a berço), de William McDonough e Michael Braungart, que acho uma obra fundamental.

Numa concretização dos conceitos que defende, o livro é feito de um material plástico e a tinta é termicamente removível, possibilitando o reaproveitamento total. E é à prova d'água!

Bom, a mudança básica que o livro propõe é bem simples: substituir um sistema linear por um circular. Hoje é:

recursos > produtos > resíduo

O que obviamente nos deixa com cada vez menos recursos e cada vez mais resíduos. Os autores querem que seja:

………..recursos
………/                 \
resíduos  –    produtos

Em outras palavras, trocar um sistema que vai “de berço a túmulo” por outro que vai “de berço a berço”, de maneira que a economia continue girando bonitona mas a Terra não seja consumida no processo.

O legal do livro é que um dos autores é arquiteto e o outro é químico. Juntos, os dois têm conhecimento bem aprofundado sobre como as coisas são: da relação das pessoas com o espaço aos processos industriais. Com essa visão abrangente do mundo eles conseguem perceber com clareza o quanto nosso sistema atual é ineficaz.

Quando fabricamos um produto, nossa única preocupação é como chegar ao consumidor. Ninguém quer nem sabe se os produtos químicos usados são voláteis e cancerígenos. Ninguém nem liga se, após o uso, o negócio vai ter que passar 300 mil anos ocupando espaço num aterro sanitário. Ninguém se interessa pelo que acontece depois.

O resultado disso é que produzimos lixo numa quantidade que supera qualquer outro produto. E esse lixo é uma mistureba de milhares de substâncias diferentes – tão bem misturadas que é impossível recuperar qualquer coisa. Já que não dá para reaproveitar, toca a retirar mais recursos da natureza.

Para resolver esse problema, o livro propõe uma divisão básica entre as matérias-primas que a humanidade emprega. Há apenas dois tipos: aquelas que são “nutrientes biológicos” e as que são “nutrientes técnicos”. Nutriente biológico é matéria orgânica, que pode ser digerida e reintegrada aos ecossistemas. Nutriente técnico é aquele que, mesmo após o uso, continua tendo valor para a indústria. Por exemplo: metais e outros materiais valiosos. Nutriente biológico alimenta o metabolismo biológico, nutriente técnico alimenta o metabolismo técnico.

A coisa mais importante é separar um tipo de nutriente do outro, para que continue disponível ao respectivo metabolismo. Só que, hoje em dia, quase todos os produtos que você encontra no supermercado misturam ambos. O resultado é uma contaminação que torna impossível o reaproveitamento. Complicado? Talvez dois exemplos simples ajudem a tornar mais concreto:

exemplo 1 – todas as embalagens de alimentos poderiam ser feitas de “material comestível”. Comestível por gente ou mesmo pelo jardim. Não há nenhuma razão para uma bolacha que é comida em 3 segundos deixe na Terra uma embalagem que ainda vai existir quando o seu tatatatatatatatatataraneto vier ao mundo. A embalagem poderia ser projetada para durar só um pouquinho mais do que o produto. Depois, quem sabe, você pode jogá-la no mato e ela vira nutriente para a terra. Para isso, claro, não dá para contaminar a embalagem (nutriente biológico) com metais pesados (nutriente técnico).

exemplo 2 – a indústria de produtos eletrônicos poderia criar um sistema de “leasing de material”, em vez do sistema atual. Em vez de comprar uma televisão, você compra 10 mil horas de direito de usar os materiais que fazem uma televisão (nutrientes técnico). 10 mil horas depois, um sujeito vai à sua casa, pega a TV, leva para a fábrica, desmonta e cada mínimo pedacinho é reaproveitado para fazer uma nova TV, muito mais avançada. Você sai ganhando: vai ficar bem mais barato. A indústria sai ganhando: seus custos e riscos diminuirão astronomicamente ao não ter que financiar a mineração de centenas de minerais. E quem sabe quanta coisa legal pode ser feita nas áreas onde hoje estão as minas.

Interessante, não é?