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Trânsito

Um carro se movendo a 60 km/h ocupa mais de 120 metros quadrados da cidade, o equivalente a um bom apartamento. (Essa área é calculada somando o espaço ocupado pelo carro em si com a área logo à frente dele, pela qual ele vai passar nos próximos 2 segundos. Ou seja, quanto mais rápido, maior a área ocupada: a 100km/h passa dos 200 metros quadrados.)

Hoje, nas cidades brasileiras, os carros, que são privados, ocupam quase a totalidade das áreas públicas. “Em São Paulo, 90% das vias são tomados por carros particulares, que carregam apenas 50% das pessoas”, diz o engenheiro de tráfego Horácio Figueira, que já citei no post da semana passada, falando da falta de respeito à vida no trânsito.

Quem anda no trânsito das grandes cidades brasileiras tem a impressão de que a maioria das pessoas está dentro de carros. Ledo engano. Eles são minoria. Em São Paulo, por exemplo, mais da metade dos deslocamentos são feitos de transporte público, táxi, a pé, de moto ou de bicicleta. Mas os carros são uma minoria que ocupa tanto espaço que parece maioria. E é tratada pelo poder público como se fosse: quase todos os investimentos são feitos para carros, sobrando um trocadinho para a maior parte da população.

Um só ônibus carrega mais gente do que uma fila de um quarteirão e meio de carros. Precisa de 25 carros (que em média carregam 1,4 pessoa) para levar as mesmas 35 pessoas que cabem sentadas num ônibus. A consequência disso é fácil de calcular para qualquer um que se lembre das leis fundamentais da física: não cabe todo mundo.

Todos os dias, 7.000 novos carros chegam às ruas no Brasil. Como as prefeituras do país quase nunca têm coragem de mudar a lógica do trânsito, elas optam por simplesmente fazer novas vias para acomodar os novos carros. Só que, obviamente, a conta não fecha: é impossível fazer faixas no mesmo ritmo em que as cidades ganham carros.

52% dos paulistanos trocariam o carro pelo ônibus “se fosse viável”. Por que então eles não trocam? Porque o transporte público é uma porcaria. Só que o maior motivo para o transporte público ser ruim é o excesso de carros (como 90% das vias estão tomadas pelos carros, não sobra espaço para um sistema público eficiente). Ou seja, chegamos a um daqueles paradoxos dignos de propaganda de biscoito: o transporte público é ruim porque todo mundo anda de carro e todo mundo anda de carro porque o transporte público é ruim.

Mudar essa situação exige, de cara, uma coisa que não temos em abundância: políticos visionários e corajosos, capazes de contrariar interesses de curto prazo para mudar sistemicamente as cidades. Ano que vem tem eleição para prefeito. É fundamental que procuremos gente assim. Muito provavelmente eles farão campanhas eleitorais pobres, já que os maiores financiadores de campanha municipal são construtoras, empreiteiras e incorporadoras, que adoram o trânsito do jeito que está. Portanto, se a propaganda na TV for muito bem produzida, desconfie.

Outra coisa de que precisamos é uma mudança cultural. Hoje, quase todos os motoristas se comportam como se eles fossem cidadãos privilegiados. Não dão passagem para ônibus (que transportam mais gente) nem para pedestres. Ficam irritados com pessoas atravessando à sua frente ou com ciclistas. Deveria ser o contrário. Um motorista deveria se comportar como alguém que está carregando um contrabaixo acústico numa loja de cristal: se movendo devagar e com um eterno sorriso simpático de quem pede desculpas pelo inconveniente que causa.

Foto: Nationaal Archief / Spaarnestad Photo, Eric Koch, The Commons, CC

Em 2007, um pesquisador de engenharia de tráfego chamado Horácio Figueira fez uma pesquisa no trânsito de São Paulo. Ele saiu pelas ruas de carro, com um assistente sentado ao seu lado armado com um bloquinho de anotações. Aleatoriamente, Horácio escolhia um carro no trânsito e seguia-o de perto, observando seu comportamento. O assistente ia anotando cada infração de trânsito que o motorista cometia. Ao todo, 628 carros foram pesquisados, todos com placa de São Paulo. As conclusões são apavorantes.

Se a lei fosse cumprida em São Paulo, em média, um motorista paulistano levaria pouco menos de 8 minutos para acumular 20 pontos e perder sua carteira de motorista. Na média, um motorista paulistano leva 2 minutos para cometer uma infração que deveria ser multada.

O recordista da pesquisa foi um carro que Horácio só conseguiu seguir por 2:58 minutos (os pesquisadores ficaram para trás num sinal vermelho). Nesse tempo, o motorista conseguiu cometer 10 infrações. Isso teria valido a ele 50 pontos na carteira e R$ 1.234,36 a pagar em multas – em apenas 3 minutos. Horácio foi checar quantas multas esse motorista efetivamente recebeu: apenas uma ao longo de um ano inteiro, por estacionar em local proibido. Ou seja, a impunidade é praticamente total. A partir da amostra de sua pesquisa, Horácio calculou quantas infrações são cometidas na cidade, e depois comparou com o número de multas aplicadas. Resultado: segundo sua estimativa, apenas 1 em cada 17.409 infrações de trânsito é punida em São Paulo. “O motorista em São Paulo tem certeza absoluta de sua impunidade”, diz o pesquisador.

São números tão imensos que parecem exagerados. Mas, se você é cético, proponho um teste fácil de conferir. Saia de casa e procure uma faixa de pedestres sem semáforo. A cada vez que um pedestre se aproximar da beirada da rua, verifique se o motorista que vem vindo dá passagem. Aposto que o índice de motoristas que desrespeitam a lei ficará bem próximo de 100%, principalmente se for uma via de alta velocidade.

O condutor do veículo com a placa EBW-2413, flagrado enquanto colocava a vida de um ser humano em risco

Outro dia vi uma senhora idosa parada na beira de uma rua, onde havia faixa de pedestres e semáforo. Estava verde para ela, mas ela não se mexia. Perguntei por quê. Ela disse que preferia esperar fechar e abrir de novo, porque na última vez não tinha se movido rápido o suficiente e tinha medo de ser surpreendida pelo sinal vermelho no meio da rua. Tente se colocar na pele dessa senhora. Para ela, cada esquina da cidade é uma ameaça de morte. Andar três quarteirões significa escapar da morte três vezes, uma em cada esquina.

Carros são a arma que mais mata no Brasil – mais que revólver. Seu uso deveria ser fiscalizado com atenção e rigor. O condutor de um automóvel deveria se comportar com cuidado absoluto, como quem carrega um objeto muito perigoso no meio de uma multidão.

Não é o que acontece. Praticamente ninguém é multado por colocar a vida dos outros em risco. Quase metade das multas aplicadas são por rodízio ou estacionamento irregular. Só é multado quem atrapalha o fluxo de veículos, não quem ameaça a vida alheia. Pela minha experiência, a situação é igual ou pior em quase todas as grandes cidades brasileiras.

Definitivamente, a prefeitura tem responsabilidade nisso, pela incompetência escandalosa em aplicar a lei. Mas, como costuma acontecer com problemas sistêmicos, o responsável não é um só. É quase todo mundo. O primeiro passo para resolver um problema sistêmico é reconhecer a responsabilidade de cada um. A cada esquina, cada motorista tem uma escolha a fazer: ele pode decidir se se importa com a vida dos outros ou não. Ultimamente, o índice de motoristas paulistanos que opta pelo não gira em torno de 100%.

Hoje no Brasil 50 mil pessoas morrem em homicídios por ano, número digno de zona de guerra. A segunda causa de morte do país é o trânsito, com 40 mil por ano. Quem mais morre no trânsito são os pedestres. Não é difícil de entender por quê.

O trânsito está nervoso, agressivo. Quando o sinal abre, os motoristas pisam fundo, para aliviar a frustração de ficar parado, e freiam bruscamente alguns metros a frente, porque o trânsito para de novo. Entre um carro e outro, cidades superlotadas estão inventando de enfiar motos. Em São Paulo, 578 pedestres morreram no trânsito em 2009 (258 atropelamentos envolviam carros, 123 envolviam motos).

Há pela cidade um bom número de faixas de pedestre, a maioria delas sem o reforço de um semáforo. Geralmente elas ficam nos cruzamentos, demarcando o caminho que os pedestres precisam cruzar para chegar ao quarteirão seguinte. Obviamente, os pedestres têm a preferência em cima dessas faixas. Na maioria das cidades brasileiras, os motoristas ignoram completamente esse fato. É como se as faixas não existissem. Se um pedestre tentar usar de seu direito de preferência, entrando na frente do carro, terá sorte se levar apenas um dedo médio erguido e uma homenagem à mãe.

Um pedestre, de muleta, com a preferência, na chuva, espera pacientemente que um carro lhe dê a preferência. Nenhum deu

Outro dia eu estava no boteco aqui em frente de casa e na mesa ao lado sentaram-se quatro fiscais do Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), exaustos, comendo um lanche no final do expediente. Perguntei a eles por que eles não multavam carros que desrespeitam a faixa. Eles responderam:

– É questão de cultura.

Cultura? E por que então não mudamos a cultura? Multas, sabe-se bem, mudam a cultura muito rapidamente. Pois qual não foi minha surpresa quando descobri o inesperado: os fiscais da CET são proibidos de multar por esse motivo. Seus talões nem sequer contêm a infração.

Ok, não têm a infração, mas têm a linha “outros”. Os fiscais, se quiserem, podem multar assinalando “outros”, não? Não exatamente. O “outros” raramente é utilizado. A CET padroniza o procedimento para cada tipo de infração e, nesse caso, até alguns meses atrás, não havia sequer procedimento estabelecido. Quando não há procedimento estabelecido, os fiscais são proibidos de agir mesmo que vejam um jipão com cara de tanque e vidro fumê passar numa poça e encharcar uma velhinha com um andador que tinha a preferência e estava na faixa de pedestres.

Uma coisa que me chamou a atenção na conversa que tive com os fiscais é que todos eles eram cidadãos bem educados, articulados, preocupados com a saúde dos cidadãos, inteligentes. Tivemos uma ótima conversa e eles tinham muitas boas ideias. Mas a prefeitura veda a eles usar seu próprio julgamento e influir no sistema.

Isso é típico do Brasil, uma das muitas lembrancinhas que a escravidão deixou no caráter nacional. Não confiamos nos “subalternos”. Por conta disso, toda decisão sobre o complexo trânsito das cidades é tomada em salinhas bege com ar condicionado por sujeitos gordinhos e de terno que andam com motorista. Os fiscais não têm liberdade de ação para colocar inteligência no sistema. Enquanto isso, a imensa maioria de nós – pedestres, usuários de transporte público, ciclistas e motoristas depois que estacionam – tenta sobreviver nas ruas.

Os gordinhos de terno só levam uma coisa em conta na hora de tomar decisões: o fluxo de veículos. Eles só são cobrados pelo prefeito por um número: quantos veículos passam pela via por hora. Esse número é uma baboseira – basta pensar que um carro, nessa conta, vale a mesma coisa que um ônibus. Contar veículos e achar que isso mede a qualidade do trânsito é uma estupidez.

Enquanto isso, as prefeituras brasileiras estão negligenciando sua tarefa de zelar pela vida dos cidadãos que pagam seus salários. Se ficar provado que a prefeitura tem instrumentos para zelar pelo bem público e pela vida do cidadão e conscientemente nega-se a utilizá-los, isso não é razão para processos civis, ações de impeachment e responsabilização criminal de gestores públicos?

PS: Quanto ao motorista que tentou assassinar dezenas de ciclistas em Porto Alegre na semana passada, só posso dizer que ficarei muito frustrado se ele passar na cadeia um dia a menos do que a pena máxima permitida neste país.

São Paulo tem uma rede de ciclovias só comparável à das cidades mais miseráveis da África, uma vergonha que depõe contra a cidade. Tem menos ciclovias do que Bogotá, Belém ou Sorocaba, cidades muito menos populosas e ricas. Houve alguns avanços microscópicos nos últimos anos, como a ciclovia da Marginal Pinheiros, que talvez venha a ser útil daqui a algumas décadas, quando estiver conectada às vias e às redes de trens e metrô (bastaria que um vagão fosse exclusivo para ciclistas com suas bicicletas), mas o cenário geral é de descaso. Gilberto Kassab, o prefeito da cidade, foi tão omisso no que se refere a esse assunto quanto qualquer prefeito antes dele.

Por que é assim? Por que a cidade trata tão mal aquelas pessoas que decidem se locomover de uma maneira que reduz o trânsito, as emissões de poluentes e melhora os indicadores de saúde da cidade?

Ativista demonstra na Avenida Paulista o tanto de espaço que um carro ocupa no trânsito

Parte da razão provavelmente tem a ver com um paradigma cultural. Kassab, como qualquer prefeito recente antes dele, tem carro. Ele está acostumado a ver a cidade através de um para-brisas. Ele é incapaz de criar empatia com um daqueles malucos suando lá fora –  simplesmente não consegue se colocar no lugar deles.

Por conta disso, nem passa pela cabeça dele o imenso absurdo que é construir uma nova ponte na cidade, com a pretensão de ser um cartão postal paulistano (a Ponte Estaiada), sem prever acesso para pedestres e ciclistas. Ele nem consegue imaginar o quanto nossos cruzamentos são ameaçadores para quem pedala, o quanto faz falta sinalização adequada. E não é só do prefeito que estou falando. Pouquíssima gente que trabalha na secretaria de transportes e na companhia de engenharia de tráfego pedala em São Paulo. Para eles, as ruas são dos carros – é esse o paradigma cultural no qual eles vivem.

Muitos motoristas têm o mesmo problema: eles estão tão acostumados a ver as ruas cheias de carro que acreditam que é assim que as coisas são, por natureza. Ciclistas são intrusos na ordem natural das coisas. Por conta disso, muitos motoristas, às vezes até bem intencionados, buzinam quando vêem uma bicicleta à sua frente. Na sua incapacidade de se colocar no lugar do ciclista, eles nem percebem que buzinadas são perigosas e desestabilizadoras para quem depende de ouvidos apurados para se manter vivo. Outros passam pelos ciclistas sem respeitar a distância mínima de 1,5 metro entre o carro e a bicicleta, colaborando para o altíssimo índice de mortes de ciclistas na cidade.

Nessa cegueira por causas culturais, o prefeito e os motoristas nem percebem o óbvio: ciclovias seriam boas para todo mundo, inclusive para os motoristas. Cidades com redes cicloviárias bem planejadas, como Londres, Nova York, Paris, Estocolmo, San Francisco, Bogotá, Copenhague têm muito menos trânsito. Vocês não querem menos trânsito, motoristas?

Sem ciclovias, vocês motoristas terão que dividir o espaço comigo. Eu pedalo no meio da pista, tranquilamente, sem pressa, e vou fazer isso enquanto não houver um espaço decente dedicado para mim. Você quer mesmo ter que dirigir devagarzinho atrás de mim? Não seria melhor dedicar uma faixa para mim e para os outros ciclistas da cidade, para que o seu carro tivesse também um espaço exclusivo e tudo fluísse melhor?

Ser contra uma boa rede cicloviária é ser a favor da lei do mais forte – da barbárie que vigora hoje em dia em São Paulo. Aqui carro maior tem mais direitos. Eu odeio ter que viver numa cidade regida por essa lógica tosca. Mas, se a lógica é essa, posso jogar o jogo: contra a ameaça de morte constante que os carros me oferecem, só o que tenho é a ameaça de chutar o retrovisor alheio.

Motorista, você não preferiria viver numa cidade que respeita o mais fraco e em troca ter seu espelhinho preservado?

No fim de semana comecei a ler o livro delicioso do David Byrne, os Diários de Bicicleta.

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No livro, o compositor, designer, artista e produtor americano conta para o leitor as ideias que passam pela cabeça dele enquanto ele pedala por aí, em Istambul ou Pittsburgh, em Berlim ou Manila, em Sydney ou Buenos Aires.

Byrne começa o livro dizendo que, do selim da bicicleta, temos uma perspectiva diferente do mundo. Mais rápido que um pedestre, mais lento que um trem, ligeiramente mais alto do que uma pessoa. Dessa perspectiva vemos algo que não se vê de outro modo, temos portanto uma compreensão um pouco diferente do mundo. Pedestres não chegam a lugar nenhum, motoristas apenas passam pelos lugares sem se relacionar com eles. Ciclistas combinam alcance (dá para pedalar 100 quilômetros num dia) com profundidade (dá para papear com todo mundo no caminho).

Eu também já andei pedalando por aí, na Ásia, nas duas Américas, na Europa, em desertos escaldantes ou entre montanhas geladas, ou ainda me esfalfando para escalar os morros de Minas Gerais.

Como Byrne notou, também percebi que os ciclistas tendem a ver a entrada dos fundos do mundo. Motoristas, quando vão à praia, geralmente não passam antes por uma chaminé gigantesca vomitando fumaça preta. Quando vão à cidade, eles não têm como calcular a grossura da camada de pobreza não-urbanizada que cerca as metrópoles. Do selim da bicicleta se vislumbra o outro lado das coisas, o impacto delas.

De lá de trás do guidão também é possível ver os olhos dos outros. E uma frestinha nos olhos deixa ver a alma. Há lugares em que essa visão é deliciosa. O motorista vê você e, imediatamente, recorda o prazer de pedalar. E aí ele sorri, e aí você se entende com ele e acena e segue em frente e vai embora sem jamais ter trocado uma palavra com aquele sujeito mas com a sensação de ter conhecido alguém de verdade. E não existe na vida prazer maior do que esse contato entre indivíduos.

Em outros lugares, quando você olha o olho de um motorista, vê só uma mancha preta de irritação com aquele imbecil pedalando na frente dele. Vê uma sensação de indignação. Como é que esse sujeito nessa caloi velha acha que tem o direito de estar à frente do meu carrão? Vê que o motorista do carro não reconhece no ciclista um indivíduo igual a ele, mas alguém hierarquicamente inferior.

Pedalei em países bem diferentes um do outro. Exemplos: Vietnã, França, Estados Unidos.

O Vietnã é um país comunista. A França é um país capitalista com um estado gigante de bem estar social. Os Estados Unidos são o país capitalista por excelência.

No Vietnã todas as bicicletas são pretas e iguais (eu levaria dias para encontrar a minha nos gigantescos estacionamentos de bikes). Na França elas são charmosas, anacrônicas e românticas. Na Califórnia elas têm infinitos modelos e são cheias de sacadas aerodinâmicas e acessórios.

Nos três lugares encontrei um número quase infinito de gente generosa, divertida, interessada, abrindo para a gente as portas de casa, nos forçando a parar na estrada para contar, tintim por tintim, por onde passamos e para insistir que jantássemos naquele restaurantezinho 3o quilômetros à frente que só ele conhecia.

Pelo menos da perspectiva de alguém se equilibrando sobre duas rodas, não tem muita diferença se estamos chacoalhando o bagageiro num país capitalista ou comunista. Pelo menos do ponto de vista meio superficial dos óculos escuros apoiados sob o capacete, o que se vê é um número mais ou menos equivalente, em cada um desses lugares, de gente legal e chata, de gente inteligente e burra, de gente de bom e mau caráter. Claro que há diferenças. Mas, pela frestinha dos olhos, a paisagem interior é relativamente parecida nesses três países.

Em todos esses países me emocionei. No Vietnã foi quando cruzei com centenas de estudantes saindo pedalando do colégio, todos com o mesmo penteado, a mesma bicicleta preta, o mesmo uniforme, os meninos lançando olhares tímidos às meninas, as meninas respondendo com risadinhas envergonhadas, e de repente vi neles minha própria adolescência e nossa humanidade comum ficou evidente. Na França foi quando cheguei ao pôr do sol a um vilarejo medieval depois de 70 quilômetros de estrada e passei pela frente de um barzinho com mesas na rua, gente rindo e linda (todo mundo é lindo à luz do pôr-do-sol) e as fomes do meu corpo (cerveja! vinho! escargot! convívio social!) todas se manifestaram ao mesmo tempo. Na Califórnia foi quando uma senhora nos abordou num restaurante onde paramos para almoçar, perguntou sobre nossa viagem, conversou, foi embora e, quando pedimos a conta, percebemos que ela já havia pago, porque queria de alguma maneira fazer parte da nossa aventura.

Nessas horas, tenho uma certeza. Sistema político é um assunto importante, claro. Mas não muito. Importante mesmo é conhecer os outros. Importante mesmo é a paisagem que se enxerga do lado de dentro dos olhos das pessoas.

A propósito: que tipo de paisagem você oferece para alguém que passa pelo seu carro de bicicleta?

Dou meu depoimento de ciclista: se eu comparar Vietnã, França, Estados Unidos e Brasil, o Brasil é o país que me mostrou a alma mais feia quando está dentro do carro.

Joaninha, à frente, nosso amigo Rodrigo Vergara, à esquerda. O resto é tudo 100% Vietnã.

Joaninha, minha esposa, à frente, nosso amigo Rodrigo Vergara, à esquerda. O resto é tudo 100% Vietnã.

Na Califórnia, as paisagens do lado de fora dos olhos também não são ruins.

Na Califórnia, as paisagens do lado de fora dos olhos também não são ruins.

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Todos os dias, 1.000 novos carros ingressam no trânsito de São Paulo. Dá quase um carro a mais atravancando as ruas por minuto. No último ano, batemos vários recordes de venda de veículos – devidamente comemorados como indícios do crescimento do país. Também temos batido os recordes de engarrafamentos, e o mais incrível é que muita gente nem percebe que haja relação entre uma coisa e outra.

Quando a economia cresce, devemos mesmo comemorar. É boa notícia, sem dúvida. Mas me assusta que nossas políticas públicas sejam planejadas com tamanha desconexão entre causa e consequência. Li num blog hoje que a velocidade média dos carros na cidade caiu mais de 15% no último ano. Hoje ela é de 15 km/h. Uma carroça puxada por dois cavalos faz 28 km/h.

Ou seja, a única razão para usarmos carros é movimentar a economia. Não se trata de movimentar as pessoas – haveria jeitos bem melhores de fazer isso, se fosse isso que quiséssemos. Em resposta à crise, os impostos sobre veículos foram reduzidos, para que o desemprego não cresça.

Isso me faz lembrar da explicação que a revista The Economist deu para a crise das gigantes automobilísticas americanas. Segundo a revista, o mal por lá foi excesso de ajuda do governo. O governo americano, preocupado com a concorrência dos carros europeus e japoneses, deu uma ajudinha às empresas americanas. Permitiu que os SUVs, aqueles carros gigantes que parecem jipes, pagassem menos imposto (por serem considerados utilitários). Isso serviu como incentivo para que as empresas fizessem carros cada dia menos econômicos. Resultado: as ruas ficaram atravancadas, o consumo de gasolina explodiu e, quando o preço do petróleo subiu, bau-bau GM. A bem intencionada  ajuda do governo, para “preservar empregos”, só serviu para aumentar o tamanho do tombo.

“Preservar empregos” é importante. Desemprego é uma tragédia que destrói famílias. Mas, em nome disso, tendemos a aceitar escolhas que não fazem sentido. Como por exemplo queimar gasolina à tôa ou entuchar carros onde já não cabe nem uma bicicleta. Será que não tem um jeito mais inteligente de um governo agir?

Você tem alguma ideia?

Foto: tronics / Flickr

Deu no New York Times.

(Leia aqui a matéria em português, via Uol).

Foi inaugurado um novo bairro suburbano, perto da cidade alemã de Freiburg, onde as casas não têm garagem, as ruas são só para bicicletas e pedestres, e os carros só podem chegar até os dois grandes estacionamentos situados nos limites da comunidade.

O conceito de “subúrbio”, nos países ricos, é bem diferente do que entendemos por ele aqui no Brasil. Por lá, a palavra designa bairros ricos, arborizados, com casas grandes. É uma ideia que se espalhou no pós Segunda Guerra nos Estados Unidos, em paralelo à decadência dos centros. Uma vida idílica, tranquila, comercial de margarina, o pai sai de carro para trabalhar todos os dias e se despede da esposa e das crianças sorridentes. Você já viu nos filmes.

Hoje esse conceito está sendo colocado em dúvida. Apesar das calçadas bonitas e floridas, ninguém anda na rua, ninguém se encontra. O subúrbio afastou as pessoas, e a dependência do carro impede que elas se encontrem no trajeto para outros lugares. Se você quer ver uma crítica demolidora a esse modelo de vida, não deixe de ver o filme recente Foi Apenas um Sonho, com Leonardo de Caprio e Kate Winslet, para entender como o sonho da vida suburbana estava equivocado.

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Até que demorou para surgir um subúrbio sem carros, como este alemão. Não é difícil entender por quê. As construtoras morrem de medo de projetar casas sem garagem ou ruas sem acesso a carros. Elas acham – provavelmente com razão – que isso derrubaria os preços das propriedades e lhes daria prejuízos. É assim que opera a tirania automobilística. Ninguém obriga ninguém a piorar sua vida para dar espaço para esses monstros de lata. Mas a sensação de que a economia depende dos carros evita que as pessoas pensem diferente. Não precisa ir longe para constatar isso: aos primeiros sinais de crise econômica o governo brasileiro baixou impostos sobre a indústria automobilística.

Um subúrbio parecido com o de Freiburg está em projeto na região de Oakland, na Baía de San Francisco, Califórnia. Alemanha e Califórnia são dois lugares com uma massa crítica suficientemente grande de gente rica com consciência ambiental. São lugares onde não ter garagem já pode ser percebido como uma vantagem, e não algo que derruba o preço da propriedade. Consciência ambiental não se ensina a força. É difundida aos poucos, através de conversas, de educação, de informação. Vai demorar para o Brasil chegar a esse ponto. Mas vai chegar. Pergunte aos seus filhos.

Sempre acompanho o blog americano Treehugger, para saber das novidades ambientais mundo afora. E às vezes pago um mico: as novidades que o Treehugger descobre estão bem aqui na minha vizinhança. Por exemplo: você sabia que o maior estacionamento de bicicletas das Américas fica em Mauá, no ABC paulista? Eu confesso que não sabia. Trata-se da Ascobike, que cobra só R$ 10 por mês de seus associados, tem vagas para quase 2 000 bicicletas e oferece serviços do tipo assessoria jurídica e manutenção para os ciclistas. O projeto é uma ong, mas se associou à estação de trem da CPTM, e virou uma espécie de bicicletário oficial da estação. Bem mais interessante que os bicicletários que vejo nas estações de metrô em São Paulo, que por enquanto parecem mais dedicados a fazer publicidade do que a efetivamente oferecer um serviço útil aos ciclistas e incentivar o uso da bicicleta como meio de transporte. (Quer oferecer um serviço útil? Cria um vagão-bicicletário, onde se possa embarcar as bikes para ir ao trabalho.)

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Veja aqui um vídeo sobre o projeto.

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Tem uma faixa de pedestres logo aqui em frente de casa (fui lá agora fotografá-la). É uma faixa gasta, meio apagada. E, para todos os efeitos, absolutamente inútil.

Como não tem semáforo, ninguém para. Fica o pedestre no meio da rua, esperando pacientemente. Às vezes é uma velhinha de muletas. Às vezes é uma moça com um bebê no colo. Às vezes demora 5, 10 minutos para abrir uma brecha, e mesmo assim só dá para passar correndo. Ninguém para. Nem o carro do CET, o departamento de engenharia de tráfego.

Isso me irrita profundamente. Então tenho o hábito de ameaçar entrar na frente do carro. O motorista se assusta, às vezes xinga, às vezes freia. Às vezes acelera, possesso, como que dizendo para mim “tenta que eu te mato”. Quando estou de muito mau humor, dou um tapa no retrovisor. Isso eventualmente vira um barraco: o motorista gritando de dentro do carro que eu sou folgado, eu apontando para a faixa no chão. Minha mulher fica bravíssima comigo: ela acha que esses atos só servem para deixar os motoristas ainda menos tolerantes com os pedestres. Eu respondo que, se eu não faço isso, o motorista nem fica sabendo que ele está errado. Afinal, ele acha que o carro dele é um presente dos céus que automaticamente o transforma numa pessoa com mais direitos do que os pobres pedestres. E não chegamos a uma conclusão: como conscientizar os motoristas que esse hábito que eles têm há anos é um absurdo? Como, se ele passa correndo, janela fechada, alheio à rua, e não dá para conversar com ele?

Mas ele vai ter que estacionar um dia. E, quando estacionar, vai ter que atravessar a rua. Ok, ok, aqui em São Paulo os absurdos chegam a limites assustadores. Tipo: inventou-se aqui a mania ridícula de cada estabelecimento comercial ter seu próprio manobrista, para o sujeito poder se transformar diretamente de motorista em consumidor, sem o humilhante estágio intermediário de pedestre.

Eu, da minha parte, não uso manobrista. Acho que seria uma traição contra a minha cidade.