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Arquivo mensal: abril 2010

Tem gente que gosta de arrumar confusão. Por exemplo, os Provos, jovens ativistas anarquistas dos anos 60 na Holanda. Eles adoravam uma treta. Fizeram um auê na Holanda monarquista e tradicionalista da época, ao ponto de terminarem nas manchetes dos jornais, e de derrubarem o chefe da polícia e o prefeito de Amsterdam.

Eram uns garotos inteligentes e absolutamente inconsequentes. No seu manifesto, eles diziam que “temos consciência de que no final iremos perder, mas não vamos deixar escapar a última chance de irritar e provocar esta sociedade até suas profundezas”.  Botaram fogo em uma casa para protestar contra o cigarro (um de seus líderes só não morreu porque foi salvo pela polícia). Falsificaram uma carta da rainha na qual ela supostamente se convertia ao anarquismo e negociava uma transição de regime com os Provos. Encenaram o transporte de grandes quantidades de chá ou alguma outra erva legal, para atrair a polícia e provocar batidas policiais desastrosas, para alegria da mídia. Abriram uma casa para vender maconha (verdadeira e de mentirinha), o que acabaria inspirando política pública no país.

Num recorte de jornal, os malucos do Provo aprontando das suas

Num recorte de jornal, os malucos do Provo aprontando das suas

Eles tinham o hábito de criar “planos brancos” para Amsterdam. Planos brancos eram intervenções urbanas que tinham o propósito de mudar a vida na cidade. Alguns eram pura piada. Por exemplo, o Plano das Galinhas Brancas. Na Holanda, a polícia era agressivamente apelidada de “galinhas azuis”. Os provos se vestiram de galinhas brancas para mostrar que a cidade podia “ter um tipo diferente de galinhas”. Aí saíram pela cidade prestando serviços grátis de saúde, distribuindo camisinhas e frango frito.

Claro, passaram muito tempo na cadeia e tomaram muita cacetada da polícia. Mas, como eram holandeses, não brasileiros, ninguém foi morto.

Outro plano branco dos Provos, certamente o que ficou mais famoso, foi o Plano das Bicicletas Brancas. Funcionaria assim: a prefeitura compraria 20.000 bicicletas, pintaria-as de branco e espalharia-as pelo centro da cidade. Qualquer pessoa poderia pegar uma bicicleta, pedalar até onde quisesse e deixá-la para o próximo. A prefeitura, óbvio, recusou o plano e não comprou bicicleta nenhuma. Os Provos então compraram umas 50. A polícia apreendeu tudo. No final, algumas acabaram liberadas e disponibilizadas na rua. Em menos de um mês todas haviam sido depredadas ou roubadas ou jogadas nos canais que cruzam a cidade.

Os anos 60 se acabaram e vieram os 70, os 80 e os 90, com seu crescente pragmatismo, e o crescente financismo do discurso político. Agora, de repente, desde que Lyon inventou o Vélo’v em 2005 e inspirou Paris a lançar o Vélib em 2007, o Plano das Bicicletas Brancas começou a ser ressuscitado no mundo todo. Toda grande cidade que se respeita no planeta tem um – às vezes privado, às vezes operado pela prefeitura (no Brasil não tem nenhum decente). A bicicleta quase nunca é grátis, como queriam os holandeses. Paga-se um pouquinho, tem que ter um cartão de crédito, identidade, deixar um caução. Enfim, toma-se precauções contra possíveis depredadores.

Talvez os punks anarquistas dos anos 60 desaprovassem tanto controle do estado sobre as bicicletas – por que diabos tenho que mostrar minha identidade? É mais certo ainda que eles não gostariam da ideia do cartão de crédito e de haver uma empresa lucrando com isso. Mas o fato é que as ideias ingênuas e absurdas dos anos 60, combinadas com o que aprendemos sobre gestão, lucro e segurança ao longo dos últimos 30 anos, ainda podem dar um caldo.

Jill Bolte Taylor era uma cientista – uma neurocientista respeitada, chefe de laboratório. Uma mulher racional, responsável, ocupada, cheia de responsabilidades, autora de artigos com nomes indecifráveis, tipo “Colocalização de decarboxilase de glutamato, hidroxilase de tirasina e imunorreatividade de serotonina no córtex pré-frontal médio de ratos”.

Aí, numa certa manhã de 1996, quando ela tinha 37 anos, ela teve um derrame cerebral que paralisou o lado esquerdo do seu cérebro e mudou sua vida para sempre. Hoje ela é uma celebridade. Tem milhões de fãs – os adolescentes a adoram. Toca violão, faz vitrais coloridos, prega a paz e leva uma vida de artista. Não pesquisa mais com ratos (porque acha que é crueldade), conversa sobre viver um harmonia com o Universo e está seriamente empenhada em “mudar o mundo”.

Hoje de manhã, entrevistei Jill por skype para uma reportagem que estou escrevendo e ela me contou um pouco sobre os últimos 15 anos da vida dela, que foram bem movimentados.

Se você não conhece essa história, recomendo muitíssimo que você assista à palestra de 19 minutos que ela deu em 2008 no TED. Sério, veja. É uma das coisas mais incríveis que já assisti. (Para ver com legendas em português, clique em “view subtitles” e escolha “Portuguese (Brazil)”).

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No dia seguinte a esta palestra ir ao ar no site do TED, 250.000 pessoas já haviam assistido. Seis semanas depois, a revista Time escolheu Jill como uma das 100 pessoas mais influentes da Terra. Em seguida, a apresentadora de TV Oprah Winfrey, talvez a maior celebridade televisiva americana, convidou Jill para uma longa entrevista no seu programa. Seu livro virou um mega best seller, traduzido em dezenas de línguas (no Brasil ele se chama “A cientista que curou seu próprio cérebro”). Hoje ela vive dando palestras, pedindo doações para pesquisas neurológicas, inspirando pacientes de derrames e viajando o mundo.

Perguntei para ela se o derrame a transformou numa hippie.

Ela negou enfaticamente. “Hippies tomavam drogas. Eu não defendo drogas. O que eu defendo é que encontremos um equilíbrio entre o lado direito e o esquerdo dos nossos cérebros.”

O lado direito do cérebro é o lado criativo – o lado do aqui e agora, da experiência, o que nos faz sentirmos parte do Universo, o que cria a sensação de que há um fluxo de energia no mundo e que fazemos parte dele. O lado esquerdo é o racional, o analítico – aquele que passa o tempo todo focado no passado e no futuro e que nos dá um senso de individualidade, de que somos seres separados do resto do Universo. O derrame paralisou o lado esquerdo do cérebro de Jill – justo o seu lado dominante, já que ela era uma pessoa imensamente racional. Sua recuperação foi longa e trabalhosa – ela teve até que reaprender a ler. Mas, ao longo do processo, ela teve várias revelações sobre como o cérebro funciona de verdade.

Por exemplo, ela percebeu que a civilização ocidental, supostamente em nome da “racionalidade”, está subjugando o lado direito do cérebro. Achamos “ingênua” qualquer ideia vinda dele. E não tem nada de racional nisso. É na verdade uma burrice: jogamos fora 50% da nossa capacidade cerebral.

Ela me disse: “há muitas divisões no mundo: homens e mulheres, esquerda e direita, brancos e negros. E, enquanto isso, estamos matando o planeta. Precisamos ir além dessas divisões e trabalhar juntos para fazer com que a vida seja melhor.” Parece papo de hippie. Mas é uma neurocientista falando.

Futebol, para mim, não é um esporte. É um assunto para se discutir. É um campo de batalha retórica.

Não entendo nada do assunto – desconheço esquemas táticos, não sei recitar escalações passadas, não enxergo sutilezas em campo. Jogo desgraçadamente mal, tão mal quanto é possível jogar. Ainda assim, adoro futebol. Adoro falar sobre futebol. Para mim, futebol é narrativa. O que está em jogo é a história que eu vou contar depois. Falar sobre futebol, para mim, é meio como escrever ficção.

Sou corintiano. Assisto aos jogos, torço para o Corinthians. Depois, invento uma narrativa gloriosa, heróica. Aí vou provocar meus amigos sãopaulinos e palmeirenses com essa narrativa. Lógico que eles também criam a narrativa deles. Aí ficamos brigando de mentirinha com palavras. Obviamente nunca ninguém sai vencedor dessa batalha retórica.

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Por exemplo, semana passada o Corinthians foi desclassificado do Campeonato Paulista. Imediatamente elaborei uma história: foi melhor assim, agora focamos na Libertadores, que é o que importa. Mas, até o ano passado, eu costumava dizer para todo mundo que não dou a menor bola para a Libertadores – campeonatinho vagabundo cheio de bolivianos (afinal, como o Corinthians nunca ganhou a Libertadores, o melhor é menosprezá-la). Não se exige coerência nessas discussões futebolísticas – pelo contrário, quanto mais criativa e absurda a argumentação, melhor.

Ou seja, no futebol, para mim, não se perde nunca. Ou somos os vencedores ou os mártires, ou somos merecedores ou injustiçados – somos sempre heróis.

Isso é divertido. É uma brincadeira.

Mas o que eu acho menos engraçado é que esse estilo de debate – polarizado, desonesto e que não chega a lugar nenhum – parece ter dominado outros assuntos muito mais sérios do que a crônica esportiva. A discussão política, por exemplo. Para onde olho, vejo gente defendendo o PT ou atacando o PT. Uns são anti-Lula independentemente dos fatos, outros são pró não importa o que aconteça. Quem acompanha a discussão não consegue nem entender o que está acontecendo de verdade – as narrativas são tão fantasiosas que não dá para saber em quem acreditar.

Vejo o mesmo acontecer com outros temas que tento discutir a sério aqui no blog. Se falo que nossas leis anti-drogas são burras e ineficazes logo aparece alguém dizendo que eu sou um maconheiro lesado que só quer comprar droga sem ser preso. Se discuto como preparar a sociedade para as iminentes mudanças climáticas, em minutos alguém me acusa de fazer parte de uma conspiração estatizante.

Ninguém parece disposto a discutir com sinceridade – ouvir opiniões conflitantes, pesá-las, levá-las a sério, juntar dados, observar, aprender. Todo mundo parece já ter escolhido o seu time e estar disposto a inventar histórias para continuar acreditando naquilo em que já acredita. Ninguém reconhece que haja méritos em outros jeitos de pensar – ou se está 100% certo ou 100% errado.

Não tenho nada contra o direito de se discutir dessa maneira, claro. Eu entendo o prazer de inventar histórias – afinal, também faço isso, quando o assunto é futebol. Mas eu não espero que ninguém leve a sério minhas opiniões futebolísticas. E não entendo por que tanta gente leva tão a sério esse pessoal que discute política como se fosse futebol.

Foto: DRB (CC)

Semana passada subi de bicicleta a ladeira da Avenida Rebouças, que separa a minha casa, em Pinheiros, da Faculdade de Medicina, junto ao Hospital das Clínicas, em São Paulo. Cheguei esfumaçado e suado à entrevista com o professor Paulo Saldiva, médico, professor de Harvard, especialista em saúde pública, um dos maiores pesquisadores de poluição do mundo.

– Veio de bicicleta? Hoje vim sem a minha, usei transporte público – ele disse.

Saldiva tem 60 anos. É um sujeito cheio de energia e de ideias.

– No meu momento da carreira, o carro usual de um professor universitário é um Audi. Eu ando de bicicleta. Eu estou bem melhor que eles. Como cientista, tenho duas hipóteses: ou bicicleta faz bem ou Audi faz mal.

Ele já teve a chance de testar a hipótese. Uma vez ficou dois anos dirigindo um carro, porque naquela época tinha que apanhar os filhos na escola.

– Engordei 20 quilos. Mas aprendi a tocar gaita. Eu ficava tentando acompanhar a música no rádio, com o trânsito parado.

Saldiva é um sujeito engraçado, já se viu. Mas ele sabe falar sério também. Por exemplo, ano passado, por determinação da Agência Nacional do Petróleo (ANP), a quantidade máxima de enxofre no diesel de caminhões deveria ter sido reduzida. Mas a ANP se esqueceu de entregar à Petrobras as novas especificações do combustível. A Petrobras se fez de morta e, quando ficou em cima da hora, alegou que não havia tempo hábil para fazer a mudança. A ANP então adiou a redução para 2012. Saldiva fez as contas:

– 14.000 pessoas vão morrer em conseqüência direta dessa prorrogação. O governo precisa saber que, ao aprovar o adiamento, autorizou a morte de 14.000 pessoas.

Ele não alivia. É especialmente crítico às empresas de petróleo, que segundo ele, deveriam incluir na sua conta o prejuízo que causam ao país, em dinheiro e em vidas.

Sim, poluição mata. Mata 12 pessoas por dia só em São Paulo. Mata mais idosos que jovens. Mata mais pobres que ricos. Quem mora na periferia e tem que esperar nos pontos de ônibus respira mais veneno do que quem está passando pelo ponto de carro soltando fumaça. Dê uma olhada no mapa que mostra a incidência de mortes por doenças respiratórias na cidade: quem mais morre é quem vive nas regiões mais pobres.

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– É um racismo ambiental – diz Saldiva.

O médico está empenhado em colocar números nesse racismo. Suas pesquisas e as dos seus muitos orientandos tentam responder perguntas bem objetivas: quantas pessoas morrem a mais dessas doenças quando a frota de carros aumenta? O quanto isso está piorando com as mudanças climáticas (também causadas em grande parte pelas emissões de poluição)? Quanto custa ao país a poluição?

Quantificar é o caminho para cobrar de quem causa o prejuízo. Por exemplo: Saldiva calcula que um paulistano perca em média um ano de vida por causa da poluição. Como somos 12 milhões de paulistanos, os canos dos escapamentos tiram de nós um total de 12 milhões de anos-homem (sem contar atropelamentos e outros danos colaterais). Calculando pelo PIB per capita, essas mortes equivalem a 9 bilhões de reais. É esse o tamanho da grana que a fumaça dos carros está surrupiando de nós. Essa fortuna precisa ser incorporada ao valor do combustível, ao preço do carro.

Não se trata de culpar os motoristas pelas mortes e pelo prejuízo. Não dá para dizer que os motoristas tenham culpa de algo que não havia sido calculado. É por isso que essas pesquisas são importantes: elas quantificam o prejuízo. E, ao quantificar, tornam possível que cada um assuma sua responsabilidade na história. Ninguém paga por coisas que não têm preço. Torna possível também imaginar políticas públicas que salvem vidas e poupem dinheiro.

Na saída da faculdade, Saldiva nos mostrou uma palmeira em frente à sua sala, bem na beira de uma Avenida Doutor Arnaldo. A parte de trás da palmeira, protegida do ar da avenida, estava coberta de líquen. A parte da frente, virada para um ponto de ônibus, estava preta, e sem líquen nenhum.

– Não é ambiente propício à vida – disse ele.

Voltei para casa pedalando e respirando o ar da Rebouças. Por quanto tempo mais?