Na primeira vez que viemos ao Chile foi porque tínhamos umas milhas acumuladas e escolhemos o país sul-americano mais distante disponível, para fazer as milhas valerem. Não tínhamos nenhuma ligação especial com o lugar, nenhuma curiosidade específica. Mas, depois de um mês aqui, algo nos encantou, difícil saber o quê.
Na segunda vez, trouxemos nossas bicicletas e passamos o ano novo cruzando a Carretera Austral, uma espécie de Transamazonica chilena, que liga nada a lugar nenhum, construída por Pinochet mais para ocupar território do que para transportar gente. Pinochet é um herói naqueles ermos da Patagonia, e passamos uma noite numa casa que tinha o retrato dele na parede. Lá fora chovia pedra e o frio era de matar. O dono da casa colocou nossas botas encharcadas no forno a lenha e fomos gratos a ele. Posição política é uma bobagem quando a vida está em jogo.
No dia 31 colocamos as bicicletas num ônibus e fomos até uma cidade tentar virar o ano sem chuva e cercados de gente. Cada pessoa que subia no ônibus carregava um cordeiro inteiro morto. Nossas bicicletas viajaram com meia dúzia de cordeiros. É isso que se come na ceia de ano novo no Chile.
Este é um país orgulhoso, de hábitos simples. Da Patagonia ao Atacama come-se as mesmas comidas, segue-se as mesmas tradições, cultua-se ou odeia-se os mesmos heróis/vilões.
Estamos no Chile, eu e a Joaninha, minha esposa, é nossa terceira vez. Passamos a última semana pedalando no deserto. Dia 31, fomos convidados por uns chilenos para uma ceia.
Tinha cordeiro, claro. Metade de um animal, cortada ao meio e colocada sobre a brasa num imenso forno de barro. Foi o primeiro cordeiro que o Miguel, nosso novo amigo chileno, assou na vida. Mas ele sabia exatamente como preparar, depois de passar a vida olhando os outros assarem o bicho todo réveillon. Perguntei se eles já tinham tentado fazer pizza naquele forno. Eles torceram o nariz. Pizza é gringa. Empanadas, aí sim, e todos se derreteram em “hmmmmm”s imaginando o pastelzinho latino.
Antes de beber vinho, o Miguel derramou um gole no chão. Para Pachamama, a Terra, de onde o vinho veio.
Chegamos ao hotel caminhando cambaleantes pelas ruas de terra, só sob a luz da absurda lua cheia do Atacama, encantados com a simplicidade daqui.
Estou escrevendo do meu celular, conectado a um wi fi precário. Amanhã subimos a cordilheira, rumo à Bolívia, e a uma semana desconectados (por isso antecipo o post da segunda. Por isso, também, peço desculpas pelos erros de digitação e pela falta de imagens).
Na minha casa em São Paulo, sou vizinho de uma brasserie francesa, tem um restaurante baiano e uma pizzaria do outro lado da rua e, na esquina, um restaurante por quilo vende sushi, pastel e macarrão. Sei fazer alguns pratos vietnamitas. Sou um cidadão do mundo, urbano, desenraizado, meio cínico. Demorei para entender a gente daqui, firme, séria, digna, tradicional. Uma gente que come cordeiro todo dia 31 de dezembro.
Lá onde eu moro, o colapso ambiental é só mais um assunto para se discutir no bar, assim como política, futebol, filosofia. Aqui é o rio secando, a geleira derretendo, a lavoura escasseando.
Fiquei sabendo que o deserto do Chile supre o mundo de lítio. Lítio é um mineral bem século 21 – com ele se faz remédios contra depressão e baterias de celular. O Miguel está preocupado porque a chegada dos carros elétricos, com bateria de lítio, pode ser uma ameaça para o deserto. Mais uma. Para você ver como esse mundo é complicado.
Mas este texto aqui não é para lamentar as mudanças climáticas nem para polemizar com os fãs de Pinochet. Daqui, do meio de um deserto de milhões de anos, esses assuntos parecem pequenos, passageiros. Escrevo para contar da grandiosidade da paisagem que me cerca, da sombra monumental do vulcão Licancabur, da lua cheia nascendo quase ao mesmo tempo em que o sol se pôs.
Escrevo porque já é 2010, um número que nem parece um ano de verdade, mas uma daquelas datas inventadas dos filmes de ficção cientifica.
Escrevo para desejar, de verdade, um feliz ano novo para você.
E para o o Planeta Terra.