No fim de semana comecei a ler o livro delicioso do David Byrne, os Diários de Bicicleta.
No livro, o compositor, designer, artista e produtor americano conta para o leitor as ideias que passam pela cabeça dele enquanto ele pedala por aí, em Istambul ou Pittsburgh, em Berlim ou Manila, em Sydney ou Buenos Aires.
Byrne começa o livro dizendo que, do selim da bicicleta, temos uma perspectiva diferente do mundo. Mais rápido que um pedestre, mais lento que um trem, ligeiramente mais alto do que uma pessoa. Dessa perspectiva vemos algo que não se vê de outro modo, temos portanto uma compreensão um pouco diferente do mundo. Pedestres não chegam a lugar nenhum, motoristas apenas passam pelos lugares sem se relacionar com eles. Ciclistas combinam alcance (dá para pedalar 100 quilômetros num dia) com profundidade (dá para papear com todo mundo no caminho).
Eu também já andei pedalando por aí, na Ásia, nas duas Américas, na Europa, em desertos escaldantes ou entre montanhas geladas, ou ainda me esfalfando para escalar os morros de Minas Gerais.
Como Byrne notou, também percebi que os ciclistas tendem a ver a entrada dos fundos do mundo. Motoristas, quando vão à praia, geralmente não passam antes por uma chaminé gigantesca vomitando fumaça preta. Quando vão à cidade, eles não têm como calcular a grossura da camada de pobreza não-urbanizada que cerca as metrópoles. Do selim da bicicleta se vislumbra o outro lado das coisas, o impacto delas.
De lá de trás do guidão também é possível ver os olhos dos outros. E uma frestinha nos olhos deixa ver a alma. Há lugares em que essa visão é deliciosa. O motorista vê você e, imediatamente, recorda o prazer de pedalar. E aí ele sorri, e aí você se entende com ele e acena e segue em frente e vai embora sem jamais ter trocado uma palavra com aquele sujeito mas com a sensação de ter conhecido alguém de verdade. E não existe na vida prazer maior do que esse contato entre indivíduos.
Em outros lugares, quando você olha o olho de um motorista, vê só uma mancha preta de irritação com aquele imbecil pedalando na frente dele. Vê uma sensação de indignação. Como é que esse sujeito nessa caloi velha acha que tem o direito de estar à frente do meu carrão? Vê que o motorista do carro não reconhece no ciclista um indivíduo igual a ele, mas alguém hierarquicamente inferior.
Pedalei em países bem diferentes um do outro. Exemplos: Vietnã, França, Estados Unidos.
O Vietnã é um país comunista. A França é um país capitalista com um estado gigante de bem estar social. Os Estados Unidos são o país capitalista por excelência.
No Vietnã todas as bicicletas são pretas e iguais (eu levaria dias para encontrar a minha nos gigantescos estacionamentos de bikes). Na França elas são charmosas, anacrônicas e românticas. Na Califórnia elas têm infinitos modelos e são cheias de sacadas aerodinâmicas e acessórios.
Nos três lugares encontrei um número quase infinito de gente generosa, divertida, interessada, abrindo para a gente as portas de casa, nos forçando a parar na estrada para contar, tintim por tintim, por onde passamos e para insistir que jantássemos naquele restaurantezinho 3o quilômetros à frente que só ele conhecia.
Pelo menos da perspectiva de alguém se equilibrando sobre duas rodas, não tem muita diferença se estamos chacoalhando o bagageiro num país capitalista ou comunista. Pelo menos do ponto de vista meio superficial dos óculos escuros apoiados sob o capacete, o que se vê é um número mais ou menos equivalente, em cada um desses lugares, de gente legal e chata, de gente inteligente e burra, de gente de bom e mau caráter. Claro que há diferenças. Mas, pela frestinha dos olhos, a paisagem interior é relativamente parecida nesses três países.
Em todos esses países me emocionei. No Vietnã foi quando cruzei com centenas de estudantes saindo pedalando do colégio, todos com o mesmo penteado, a mesma bicicleta preta, o mesmo uniforme, os meninos lançando olhares tímidos às meninas, as meninas respondendo com risadinhas envergonhadas, e de repente vi neles minha própria adolescência e nossa humanidade comum ficou evidente. Na França foi quando cheguei ao pôr do sol a um vilarejo medieval depois de 70 quilômetros de estrada e passei pela frente de um barzinho com mesas na rua, gente rindo e linda (todo mundo é lindo à luz do pôr-do-sol) e as fomes do meu corpo (cerveja! vinho! escargot! convívio social!) todas se manifestaram ao mesmo tempo. Na Califórnia foi quando uma senhora nos abordou num restaurante onde paramos para almoçar, perguntou sobre nossa viagem, conversou, foi embora e, quando pedimos a conta, percebemos que ela já havia pago, porque queria de alguma maneira fazer parte da nossa aventura.
Nessas horas, tenho uma certeza. Sistema político é um assunto importante, claro. Mas não muito. Importante mesmo é conhecer os outros. Importante mesmo é a paisagem que se enxerga do lado de dentro dos olhos das pessoas.
A propósito: que tipo de paisagem você oferece para alguém que passa pelo seu carro de bicicleta?
Dou meu depoimento de ciclista: se eu comparar Vietnã, França, Estados Unidos e Brasil, o Brasil é o país que me mostrou a alma mais feia quando está dentro do carro.