arquivo

Arquivo mensal: fevereiro 2010

No fim de semana comecei a ler o livro delicioso do David Byrne, os Diários de Bicicleta.

diarios_de_bicicleta-295x450

No livro, o compositor, designer, artista e produtor americano conta para o leitor as ideias que passam pela cabeça dele enquanto ele pedala por aí, em Istambul ou Pittsburgh, em Berlim ou Manila, em Sydney ou Buenos Aires.

Byrne começa o livro dizendo que, do selim da bicicleta, temos uma perspectiva diferente do mundo. Mais rápido que um pedestre, mais lento que um trem, ligeiramente mais alto do que uma pessoa. Dessa perspectiva vemos algo que não se vê de outro modo, temos portanto uma compreensão um pouco diferente do mundo. Pedestres não chegam a lugar nenhum, motoristas apenas passam pelos lugares sem se relacionar com eles. Ciclistas combinam alcance (dá para pedalar 100 quilômetros num dia) com profundidade (dá para papear com todo mundo no caminho).

Eu também já andei pedalando por aí, na Ásia, nas duas Américas, na Europa, em desertos escaldantes ou entre montanhas geladas, ou ainda me esfalfando para escalar os morros de Minas Gerais.

Como Byrne notou, também percebi que os ciclistas tendem a ver a entrada dos fundos do mundo. Motoristas, quando vão à praia, geralmente não passam antes por uma chaminé gigantesca vomitando fumaça preta. Quando vão à cidade, eles não têm como calcular a grossura da camada de pobreza não-urbanizada que cerca as metrópoles. Do selim da bicicleta se vislumbra o outro lado das coisas, o impacto delas.

De lá de trás do guidão também é possível ver os olhos dos outros. E uma frestinha nos olhos deixa ver a alma. Há lugares em que essa visão é deliciosa. O motorista vê você e, imediatamente, recorda o prazer de pedalar. E aí ele sorri, e aí você se entende com ele e acena e segue em frente e vai embora sem jamais ter trocado uma palavra com aquele sujeito mas com a sensação de ter conhecido alguém de verdade. E não existe na vida prazer maior do que esse contato entre indivíduos.

Em outros lugares, quando você olha o olho de um motorista, vê só uma mancha preta de irritação com aquele imbecil pedalando na frente dele. Vê uma sensação de indignação. Como é que esse sujeito nessa caloi velha acha que tem o direito de estar à frente do meu carrão? Vê que o motorista do carro não reconhece no ciclista um indivíduo igual a ele, mas alguém hierarquicamente inferior.

Pedalei em países bem diferentes um do outro. Exemplos: Vietnã, França, Estados Unidos.

O Vietnã é um país comunista. A França é um país capitalista com um estado gigante de bem estar social. Os Estados Unidos são o país capitalista por excelência.

No Vietnã todas as bicicletas são pretas e iguais (eu levaria dias para encontrar a minha nos gigantescos estacionamentos de bikes). Na França elas são charmosas, anacrônicas e românticas. Na Califórnia elas têm infinitos modelos e são cheias de sacadas aerodinâmicas e acessórios.

Nos três lugares encontrei um número quase infinito de gente generosa, divertida, interessada, abrindo para a gente as portas de casa, nos forçando a parar na estrada para contar, tintim por tintim, por onde passamos e para insistir que jantássemos naquele restaurantezinho 3o quilômetros à frente que só ele conhecia.

Pelo menos da perspectiva de alguém se equilibrando sobre duas rodas, não tem muita diferença se estamos chacoalhando o bagageiro num país capitalista ou comunista. Pelo menos do ponto de vista meio superficial dos óculos escuros apoiados sob o capacete, o que se vê é um número mais ou menos equivalente, em cada um desses lugares, de gente legal e chata, de gente inteligente e burra, de gente de bom e mau caráter. Claro que há diferenças. Mas, pela frestinha dos olhos, a paisagem interior é relativamente parecida nesses três países.

Em todos esses países me emocionei. No Vietnã foi quando cruzei com centenas de estudantes saindo pedalando do colégio, todos com o mesmo penteado, a mesma bicicleta preta, o mesmo uniforme, os meninos lançando olhares tímidos às meninas, as meninas respondendo com risadinhas envergonhadas, e de repente vi neles minha própria adolescência e nossa humanidade comum ficou evidente. Na França foi quando cheguei ao pôr do sol a um vilarejo medieval depois de 70 quilômetros de estrada e passei pela frente de um barzinho com mesas na rua, gente rindo e linda (todo mundo é lindo à luz do pôr-do-sol) e as fomes do meu corpo (cerveja! vinho! escargot! convívio social!) todas se manifestaram ao mesmo tempo. Na Califórnia foi quando uma senhora nos abordou num restaurante onde paramos para almoçar, perguntou sobre nossa viagem, conversou, foi embora e, quando pedimos a conta, percebemos que ela já havia pago, porque queria de alguma maneira fazer parte da nossa aventura.

Nessas horas, tenho uma certeza. Sistema político é um assunto importante, claro. Mas não muito. Importante mesmo é conhecer os outros. Importante mesmo é a paisagem que se enxerga do lado de dentro dos olhos das pessoas.

A propósito: que tipo de paisagem você oferece para alguém que passa pelo seu carro de bicicleta?

Dou meu depoimento de ciclista: se eu comparar Vietnã, França, Estados Unidos e Brasil, o Brasil é o país que me mostrou a alma mais feia quando está dentro do carro.

Joaninha, à frente, nosso amigo Rodrigo Vergara, à esquerda. O resto é tudo 100% Vietnã.

Joaninha, minha esposa, à frente, nosso amigo Rodrigo Vergara, à esquerda. O resto é tudo 100% Vietnã.

Na Califórnia, as paisagens do lado de fora dos olhos também não são ruins.

Na Califórnia, as paisagens do lado de fora dos olhos também não são ruins.

Estamos criando um país de covardes.

Os muros do Brasil ficam cada vez mais altos – e cada vez mais adornados por acessórios tétricos como fios de alta tensão e lanças pontudas. Em São Paulo, apartamentos ficaram mais caros que casas. Há cada vez mais guaritas nas esquinas, cada vez mais grades nas janelas, cada vez mais holofotes nas calçadas, cada vez mais câmeras, cada vez mais voltas na fechadura e, o que mais me assusta, cada vez menos crianças brincando na rua. Os carros parecem cada dia mais com fortificações – são como jipes de guerra, isolados do mundo por detestáveis vidros fumê, que impossibilitam o contato visual. O Brasil está com medo.

Por que será?

Afinal, em termos concretos, o país não está ficando mais perigoso. Os índices de crimes violentos das nossas grandes cidades, embora continuem altos o suficiente para serem comparados sem muita desvantagem com zonas de guerra, estão caindo rapidamente. Os últimos 15 anos, que foram de estabilidade econômica e de redução da nossa astronômica desigualdade, foram também de diminuição consistente da criminalidade em boa parte do país. Mas a sensação de insegurança andou na contramão – ela aumentou. Aumentou muito.

Como explicar isso?

Talvez uma parte da história seja o grande aumento da classe média. Classe média é gente que tem algo a perder – portanto tem medo. Talvez outra parte da história seja a fixação mórbida que a sociedade da informação tem com violência. O tempo todo ouvimos histórias sanguinolentas, terríveis, assustadoras. Difícil não ter medo depois de ficar sabendo dessas coisas.

Acontece que medo é um sentimento perigoso. Mais gente com medo significa menos gente na rua – portanto mais crime. Significa mais gente armada, mais gente disposta a agredir os outros (porque comportamente agressivo é típico de gente assustada). Enfim, medo não funciona.

Eu morro de medo do efeito que esse medo pode ter no nosso futuro. Será que estamos criando uma geração de gente que não vai aprender a conviver com quem é diferente dele? Uma geração de gente que não cresceu na rua, que não teve que se virar gerenciando os riscos inerentes à vida? Uma geração de gente que não se garante?

Penso isso enquanto embalo minha ressaca depois de quatro dias de Carnaval em Olinda, a cidade da minha esposa. A festa foi linda. A cidade tomou as ruas. Será que no Brasil assustado que estamos criando vai ter espaço pro Carnaval?

Viver é perigoso mesmo. Viver mata. Mas são os riscos que fazem a vida valer a pena. As ruas estão cheias de perigo – não nego isso. Mas é convivendo com esses perigos, encarando-os de olho no olho, que a gente se torna melhor, que a gente aprende a viver (“viver é conviver”, sempre diz minha tia-avó). Se o Brasil aprender a vencer o medo, tem uma baita oportunidade de servir de exemplo para o mundo de convivência na diversidade. Se não aprender, vai virar um país besta, sem nada de especial.

Você sabe que a sociedade está doente quando seus meios de transporte são inspirados em veículos de guerra

Você sabe que a sociedade está doente quando seus meios de transporte são inspirados em veículos de guerra. Imagem: Mike Licht, NotionsCapital.com (CC)

apache-warrior1

Um guerreiro apache, em foto de 1903 (CC)

Quando os espanhóis chegaram às Américas, nos últimos anos do século 15, encontraram um monte de povos, vivendo os mais variados estilos de vida.

No México, deram de cara com os aztecas, e ficaram maravilhados. Sua capital, Tenochtitlan, depois rebatizada de Cidade do México, era uma cidade de 200.000 habitantes, provavelmente maior e mais imponente que qualquer metrópole europeia da época. Havia palácios, muito ouro, roupas luxuosas, uma cultura sofisticada e um líder tão poderoso quanto os reis europeus. Sua tecnologia de guerra era sofisticada (apenas um pouco menos que a dos espanhóis, que já conheciam a pólvora). Os aztecas sabiam trabalhar o metal e tinham armas capazes de perfurar armaduras espanholas.

Mais ao norte, onde hoje é o sudoeste americano, os espanhóis encontraram os apaches, e não ficaram nem um pouco impressionados. Esse povo nômade, disperso, descentralizado, era um amontoado de bandos aparentados sem hierarquia entre si, que viviam dos búfalos que conseguissem matar. Suas ferramentas eram poucas e rústicas, suas armas não iam além de flechas, lanças e machadinhas, feitas de pau e pedra. Não ergueram grandes edifícios. Quase não deixaram ruínas arqueológicas.

Pois bem. Os espanhóis derrotaram os aztecas em 10 anos. E levaram mais de 200 para imporem-se aos apaches, que mesmo depois disso continuaram incomodando os americanos que anexaram aquele pedaço do México aos Estados Unidos.

Por quê? Porque os aztecas, centralizados e hierarquizados, eram também muito menos flexíveis. Bastou aos espanhóis matar seu líder e os comandados passaram a obedecer ao rei da Espanha. Já os apaches, guerreiros, indóceis e sem líder, simplesmente não aceitaram o novo comando. Inspirados pelo exemplo dos guerreiros do passado, eles negaram-se a adotar novos valores. Não importava quantos espanhóis houvesse – enquanto um apache estivesse vivo, Madrid tinha um inimigo.

Quem me contou essa história foi o Helder Araújo, um jovem designer e empreendedor, amigo meu, citando um livro que ele leu (“The Starfish and the Spider”, de Ori Brafman e Rod Beckstrom). Helder, que é o sujeito que trouxe o TED ao Brasil (TED é o evento californiano que reúne palestras com “ideias que merecem ser espalhadas”), me contou isso enquanto discutíamos projetos que pretendemos fazer juntos. Ele acha que temos que trabalhar como apaches.

Afinal, vivemos uma época de transição (como os apaches e aztecas do século 16). Nascemos num Brasil hierárquico e desigual, insustentável e saudoso do escravismo – um país de estruturas rígidas e imutáveis. Bem azteca, portanto. O Brasil mudou muito: mais gente está conseguindo jogar o jogo. A desigualdade diminuiu, a economia estável significa que é possível empreender e a mobilidade de classes aumentou. Para complicar mais, o mundo inteiro está mudando: a grande crise do nosso modelo de sociedade significa que os gigantes que monopolizavam o mundo já não necessariamente mandam em nós. De repente, a colossal GM vê-se ameaçada por empresinhas de fundo de quintal.

No modelo antigo, o azteca, grandes empresas competem umas com as outras. Quando uma ganha, a outra perde. Aos consumidores resta escolher uma gigante e obedecer a ela.

Já no modelo apache, nem sempre é preciso competir. Trabalha-se muito mais com alianças. Uma empresinha que sabe fazer sites junta-se com uma empresinha que desenha produtos e com uma empresinha que faz filmes e de repente eles são capazes de fazer juntos coisas grandiosas. O público, em vez de mero espectador, é cada vez mais parte da aliança.

Tudo muito lindo, mas é bom não se esquecer de uma coisa: os apaches deram trabalho, mas, no final, perderam. Depois de apanhar por anos, eles finalmente sucumbiram – o golpe de misericórdia foi uma campanha deliberada para extinguir o búfalo, que liquidou o prato preferido dos apaches e, de quebra, sua identidade guerreira.

Acontece que os apaches, ao contrário de nós, não tinham internet. As novas tecnologias de comunicação significam que ficou infinitamente mais fácil se articular sem hierarquia e construir coisas grandes (apaches, ao contrário dos aztecas, não deixaram obras impressionantes).

Eu digo sempre aqui no blog que o nosso modelo de civilização está em transição – que o modelo insustentável em vigor vai dar lugar a uma outra coisa. Quando eu digo isso, às vezes me acusam de ser um stalinista saudoso, que acha que uma revolução vai colocar uma burocracia comunista no poder. Não é nada disso. Nosso modelo está é sob ataque de apaches. No lugar dele, não vai haver um outro modelo – o que vai aparecer é um monte de alternativas diferentes, descentralizadas, desierarquizadas, apenas articuladas umas com as outras por alianças baseadas em valores em comum.

Uma vez fui a um jogo de futebol especialmente lotado – um Brasil e Argentina no Morumbi. Na saída do estádio, havia uma multidão na rua. Fiz o que costumo fazer: saí andando em frente, me enfiando entre as pessoas, certo de que uma hora eu me afastaria o suficiente do estádio para que diminuísse o aperto. Mas o aperto foi aumentando, porque as pessoas vinham de todos os lados – umas subindo a rua, outras descendo, umas por trás, outras pela frente

Até que chegamos a um impasse. Os movimentos pararam. Não havia mais como avançar, dei de cara num paredão de gente. Não havia como recuar – atrás de mim um outro paredão de gente me empurrava, ainda na esperança de avançar. Por um instante, entrei em pânico.

“É assim que se morre esmagado?”, pensei.

Mas, depois de uns longos minutos, a pressão foi cedendo. As pessoas atrás de mim conseguiram dar um passinho para trás, as pessoas à frente também. E logo eu estava longe da multidão. Não aconteceu nada de grave. Poderia ter acontecido.

torcida

Conto essa historinha banal porque ela me veio à cabeça esses dias, enquanto eu pensava no atual momento do nosso modelo de civilização. Também aqui, chegamos a um impasse. Depois de algumas décadas com cada um de nós seguindo em frente, na esperança de que tudo fosse dar certo, estamos presos, imobilizados. Parte da humanidade clama por um passinho atrás. Outra parte segue empurrando para a frente. No geral, o que se vê é a galera entrando em pânico: uma sensação de que a coisa vai feder, de que estamos sendo esmagados, de que os empurrões vão ficar cada vez mais fortes até não haver espaço nem para o ar dentro dos nossos pulmões.

A aceleração das mudanças climáticas, a aceleração das extinções das espécies, as oscilações violentas da economia mundial, o colapso das cidades, tão bem exemplificado pelo trânsito ou pelas enchentes que tomaram São Paulo, são só alguns dos sinais de que não dá mais para continuar seguindo em frente. Precisamos mudar de rumo. Precisamos trocar de modelo.

Lógico que fazer isso é mais fácil de falar do que de fazer. Somos uma multidão, e cada um de nós tem sua própria vontade. Você pode até gritar “vamos todo mundo para cá”, ou “vamos todo mundo para lá”, mas cada um decide se obedece ou não. Cabe a cada um de nós resolver se vai diminuir o ritmo ou apoiar os cotovelos no sujeito da frente e empurrar mais forte.

Eu não sou santo. Tenho plena consciência de que faço parte do empurra-empurra. Tenho uma pá de hábitos insustentáveis: consumo demais, viajo demais de avião, gosto de cheeseburger. Nos últimos anos, no entanto, comecei a abrir mão de coisas: me livrei do meu carro, cortei meu consumo, abandonei os sacos plásticos, fiz uma composteira no quintal e reduzi bruscamente minha produção de lixo. Não sou santo, repito. Não tenho hábitos perfeitos. Mas estou fazendo força para dar um passinho para trás. Estou abrindo mão de algumas coisinhas, na esperança de que o aperto diminua para todo mundo (inclusive para mim e, principalmente, para o meu filho, que ainda não nasceu).

No geral, abrir mão dessas coisas tem sido mais um prazer do que um sacrifício. Livrar-me do carro, por exemplo, fez de mim um sujeito mais feliz, mais magro, mais saudável (e, nos últimos meses, mais molhado). Esqueci o que é ficar preso no trânsito e fiz um monte de amigos passando por eles de bicicleta.

Não acho que vamos “salvar o mundo”. Não acho que vamos nos mudar para o éden verde. Mas tenho esperança de que eu vá sentir de novo a mesma sensação daquela tarde de vitória brasileira no Morumbi: o alívio de saber que a vida continua.