Olha só a história que ouvi numa palestra (em inglês).
O sargento Martin Stadtler, do exército americano, foi enviado ao Iraque, e designado para uma base militar perto de Mosul. A base era gigantesca – uns 24 quilômetros quadrados – e cercada de forças hostis. Para protegê-la, havia em seu diâmetro diversas torres de observação, de onde duplas de soldados montavam guarda. Só que havia um problema. A base era tão grande que a distância entre as torres era maior que o alcance do rádio. O exército estava tendo que brincar de telefone sem fio – colocou soldados parados entre uma torre e outra para retransmitir as mensagens. Era uma solução cara, desconfortável, ineficaz, perigosa. A segurança da base toda estava ameaçada.
Por sorte, Stadtler, além de sargento, é parte da comunidade “open source” – ou código aberto, ou software livre, um hacker, programador habituado a modificar softwares e trabalhar colaborativamente, eventualmente infringindo leis de direitos autorais. Se Stadtler fosse usar os caminhos oficiais para resolver seu problema – comunicar seus superiores e solicitar rádios novos com alcance maior – a solução levaria talvez uns 6 meses e custaria pelo menos alguns milhões de dólares. Quando os rádios chegassem, é bem possível que seu pelotão já não tivesse mais naquela base. Em vez disso, o sargento fuçou nas latas de lixo da base e encontrou um laptop velho e várias sobras de fios. Usando software livre – código de programação disponível gratuitamente na internet – ele construiu uma rede de telefones sem fio interligando as torres. O custo foi virtualmente zero, a instalação levou alguns dias e o problema foi resolvido.
A história de Stadler ilustra com perfeição a diferença entre o jeito tradicional de governar e um jeito diferente, que está se espalhando pelo mundo, embora a mídia não fale nisso e a maioria dos políticos nem saibam do que se trata. O jeito tradicional é assim: o governo faz um grande projeto, todo pensado bem longe de onde o problema está. Geralmente contrata uma corporação gigante para executar o projeto, e paga a ela uma fortuna de bilhões. Isso se for um governo capitalista. Governos comunistas preferem executar o trabalho por conta própria – igualmente gastando bilhões. O jeito novo, quando existir, será assim: o governo não tenta centralizar nada. Ele disponibiliza de graça as ferramentas para resolver problemas e dá autonomia a quem está lá pertinho do problema para resolvê-lo do jeito que achar melhor.
Muita gente tem celebrado a importância de os Estados Unidos terem eleito seu primeiro presidente negro. Legal mesmo. Mas acho que mais importante ainda é o fato de que eles elegeram o seu primeiro presidente nerd. Obama não sabe fazer telefones sem fios, como Stadtler, mas, até por uma questão geracional, entende bem as vantagens de trabalhar de maneira descentralizada, em grandes redes, sem fazer segredo, confiando nas soluções criativas de indivíduos, dando poder de decidir para gente inteligente, que aprende com os erros.
Um documento fundamental emitido logo no começo de sua gestão – que passou quase despercebido em meio a crises mundias e quetais – foi um memorando dirigido a todos os chefes de departamentos e agências executivas. O nome do documento era “Estamos tentando. Por favor nos ajude”. Veja um trecho:
“Minha gestão está comprometida a criar um nível de abertura sem precedentes no Governo. Vamos trabalhar juntos para garantir a confiança do público e estabelecer um sistema de transparência, participação pública e colaboração. Essa abertura vai fortalecer nossa democracia e promover eficiência e eficácia no Governo.”
Esse conceito de “abertura” de Obama – transparência, participação, colaboração – é exatamente o que o movimento do software livre vem defendendo faz tempo. A ideia básica: um governo menos onipresente, menor, projetos menos faraônicos, mais poder para a sociedade resolver seus próprios problemas. Algo como um pout-pourri do que existe de melhor nas ideologias da esquerda (combate às injustiças, engajamento da sociedade, enfraquecimento das corporações, colaboração) e da direita (estado pequeno, liberdades individuais, sociedade cuidando de seus próprios problemas). Sem autoritarismo, doença crônica das duas ideologias.
Justiça seja feita: embora ninguém comente o assunto, o Brasil também tem feito progressos interessantes nessa seara. Na gestão Lula – embora muito provavelmente sem qualquer participação dele – o Brasil se tornou uma potência do software livre. É com software e hardware livre que se está construindo o programa Pontos de Cultura, uma rede de focos de produção de ideias espalhados pelo país, sem controle do governo. Num país tradicionalmente dominado por pouquíssimas vozes, onde a cultura é autoritária e a elite gosta de achar que o povão é um poço de burrice, isso é um baita avanço.
Tudo isso pode parecer pouco importante, mas é talvez a mudança mais relevante acontecendo atualmente para a democracia mundial. Se o movimento do software livre conseguir hackear os governos do mundo, criando canais de comunicação direta com a população, dando espaço para que cada um possa se organizar e construir um pouquinho da sociedade, teremos dado um passo gigante na direção de uma vida política com mais civismo, mais sentido, mais sustentabilidade. É claro que tem muita gente poderosa empenhada em que isso não aconteça – nos governos e nas corporações.
Semana que vem, o visionário Tim O’Reilly, o homem que inventou a expressão web 2.0, vai organizar em Washington o gov2.0 Summit, uma conferência recheadas de figurões da Casa Branca para discutir o potencial da internet para transformar a democracia e o mundo. Estou arrumando minhas malas para assistir. Depois conto para vocês.