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Arquivo mensal: abril 2011

Cheguei ontem bem cedinho aos Estados Unidos, a tempo de ver pela janela do aeroporto de Newark o sol nascendo enorme no horizonte, quase tão grande quanto o Empire State Building, ao lado dele. Ainda no aeroporto, comprei a revista The Economist, que avisava na capa que a guerra contra as drogas chegou à América Central.

Hoje os minúsculos países do istmo da América Central são o pedaço mais violento do mundo, se não contarmos os países em guerra. Na realidade, tanto a Nicarágua quanto El Salvador são mais violentos hoje do que quando estavam em guerra civil. A revista estima que o combate ao crime custa à América Central, que já é pobre, 8% do seu PIB. É uma desgraça. Até a Costa Rica, antes “a Suíça da América Central”, está sofrendo.

A onda de violência começou depois que o México endureceu a repressão às drogas vindas da América do Sul, especialmente cocaína. Agora, toda a cocaína que entra nos Estados Unidos precisa necessariamente passar pela América Central. Conversei ontem em Washington com Steven Dudley, diretor da InSight, uma organização que investiga crime na América Latina. “É fácil de entender”, ele disse. “Quando entra na Guatemala, pelo sul, um quilo de cocaína custa 7 mil dólares. Quando sai de lá, pelo norte, custa 15 mil. O preço mais que dobra. É por esse dinheiro que as gangues estão brigando.”

A Economist discute possíveis soluções para a violência, mas conclui batendo mais uma vez numa velha tecla. “Essas ideias não vão resolver o problema fundamental: enquanto drogas que as pessoas querem consumir forem proibidas, e portanto fornecidas por criminosos, livrar uma área ensanguentada dos traficantes só vai servir para empurrá-los para outro lugar.”

É um velho problema que nós aí na terrinha conhecemos bem: endurecer a repressão contra as drogas há décadas tem servido apenas para tornar o crime mais e mais violento – é um pouco como enxugar gelo, um esforço constante que não leva a lugar nenhum. O consumo não cai um milímetro e o número de pessoas sofrendo com overdoses, dependência e violência só aumenta.

Estou aqui para fazer uma pesquisa sobre esquemas alternativos de lidar com as drogas. A ideia é escrever um livro para ser lançado ainda este ano. Pretendo ir conhecer os estados americanos que estão bolando esquemas para fornecer maconha para uso médico e entender a quantas anda o movimento pela legalização – parece possível que, pela primeira vez em décadas, pelo menos um estado americano legalize a maconha no ano que vem. Quero visitar a indústria da maconha legal nos EUA, que alguns especialistas dizem que já se tornou o maior produto agrícola do país. Depois vou conhecer iniciativas de flexibilização na Europa. Este blog vai tratar muito deste tema nos próximos dois meses (mas não exclusivamente dele).

Legalizar as drogas não é a solução mágica para todos os problemas do mundo, claro. Na verdade, é a proibição que foi concebida como uma solução mágica que livraria o planeta do sofrimento causado por substâncias malignas. Com o tempo, o mundo foi percebendo que essa solução radical – a proibição – era enormemente ingênua. Ela não apenas não resolveu o problema que se propunha a atacar – o sofrimento na verdade aumentou –, como causou vários novos. A onda de violência na América Central é só o último de uma longa lista.

A proibição às drogas foi como um elefante que deixamos entrar na sala. Tirar o elefante não vai acabar com o cheiro ruim de uma hora para outra. Mas pelo menos vamos conseguir começar a limpar a sujeira acumulada nesses anos todos de política equivocada.

Uma vez por ano, tenho esperança em São Paulo. É na noite da Virada Cultural, um evento de 24 horas no qual o centro da cidade é fechado para os carros, centenas de shows e performances artísticas tomam as ruas e a cidade toda sai da casa para celebrar. É uma das maiores festas do mundo. Fui para a rua aproveitar, como faço sempre.

Na madrugada fui assistir a um show de Eumir Deodato, o mítico músico brasileiro de jazz que vive há anos nos Estados Unidos. O palco estava armado no largo de São Bento, em cima da calçada e virado para a rua. O público ficava em pé no asfalto.

Logo no começo do show, uma viatura policial apareceu e começou a se enfiar no meio do público – queria que todo mundo saísse da frente do palco para ele passar. Os músicos, claro, ficaram incomodados com a interrupção. Mas um policial, simpático, abriu a janela, pediu desculpas e licença e o povo saiu da frente compreendendo que emergências acontecem. Todo mundo se espremeu, o carro andou devagar, a massa de gente se fechou atrás dele, o show recomeçou

Uns 10 minutos depois apareceu uma ambulância. Mesma coisa. O público teve até mais boa vontade do que da primeira vez, como costuma acontecer com ambulâncias. Logo depois surge uma van. Dessa vez, Deodato, que mora em Nova York e quase nunca toca no Brasil, deu sinal de impaciência. Recusou-se a parar de tocar, incentivando o público a ficar onde estava. O motorista da van ficou contrariado, passou uns 5 minutos tentando empurrar o povo, mas foi bloqueado, acabou desistindo e indo embora de ré.

Mais uns 10 minutos e surge uma viatura de imprensa. O motorista, certamente escolado em lidar com multidões, encostou o para-choques na galera e foi acelerando devagar, técnica perfeita para tirar as pessoas da frente, quase sempre sem derrubar ninguém. O público se irritou e começou a chacoalhar o carro. Uma hora uma moça que estava dentro da van abriu a janela e começou a berrar:

– Saiam da frente. Estamos trabalhando.

Um espectador do show protestou:

– Estamos vendo o show, vocês estão atrapalhando.

A moça, impafiosa, retrucou:

– Vocês é que estão atrapalhando. Nós estamos trabalhando.

O show durou 1 hora, mais ou menos. Sete carros tentaram passar nesse intervalo, sempre atrapalhando os músicos. Placar final, Carros 6 X 1 Público (só conseguimos resistir à van).

A cena da moça loirinha de olhos azuis, berrando esganiçada e vermelha de raiva, não me sai da cabeça. Para mim ela é reveladora de tanta coisa. Aqueles gritos indignados são ecos de um Brasil escravagista, onde quem estava na rua era inferior, indigno de respeito. Aquela moça realmente achava que cobrir a Virada Cultural é mais importante do que a Virada Cultural.

Essa mesma atitude da moça está presente nos gestores públicos brasileiros. No fundo, eles se acham seres melhores do que o povão lá fora. Consequentemente, eles não vão muito lá fora. A Virada Cultural é a melhor coisa de São Paulo hoje, mas ela é cheia de traços que denunciam esse desprezo dos gestores públicos pelas pessoas. A programação musical é ótima, mas, de resto, quase nada é divertido, criativo, focado em melhorar a experiência das pessoas (nesse sentido, a Virada de 2011 foi um retrocesso em relação a 2009 e 2010). A sinalização do evento é confusa e cheia de erros. Vi uma seta apontando o lado oposto que deveria apontar – sinal de que a sinalização foi planejada dentro de um escritório com ar-condicionado. Se fosse planejada na rua, não estaria errada.

Gostamos de culpar os políticos pelos nossos problemas, e é mesmo verdade que os políticos são de uma ruindade de dar dó. Mas é importante reconhecermos que os políticos são ruins porque têm determinados traços de personalidade que estão presentes na sociedade toda. Não nos livraremos dos políticos ruins antes de nos livrarmos dessa mentalidade.

Um carro se movendo a 60 km/h ocupa mais de 120 metros quadrados da cidade, o equivalente a um bom apartamento. (Essa área é calculada somando o espaço ocupado pelo carro em si com a área logo à frente dele, pela qual ele vai passar nos próximos 2 segundos. Ou seja, quanto mais rápido, maior a área ocupada: a 100km/h passa dos 200 metros quadrados.)

Hoje, nas cidades brasileiras, os carros, que são privados, ocupam quase a totalidade das áreas públicas. “Em São Paulo, 90% das vias são tomados por carros particulares, que carregam apenas 50% das pessoas”, diz o engenheiro de tráfego Horácio Figueira, que já citei no post da semana passada, falando da falta de respeito à vida no trânsito.

Quem anda no trânsito das grandes cidades brasileiras tem a impressão de que a maioria das pessoas está dentro de carros. Ledo engano. Eles são minoria. Em São Paulo, por exemplo, mais da metade dos deslocamentos são feitos de transporte público, táxi, a pé, de moto ou de bicicleta. Mas os carros são uma minoria que ocupa tanto espaço que parece maioria. E é tratada pelo poder público como se fosse: quase todos os investimentos são feitos para carros, sobrando um trocadinho para a maior parte da população.

Um só ônibus carrega mais gente do que uma fila de um quarteirão e meio de carros. Precisa de 25 carros (que em média carregam 1,4 pessoa) para levar as mesmas 35 pessoas que cabem sentadas num ônibus. A consequência disso é fácil de calcular para qualquer um que se lembre das leis fundamentais da física: não cabe todo mundo.

Todos os dias, 7.000 novos carros chegam às ruas no Brasil. Como as prefeituras do país quase nunca têm coragem de mudar a lógica do trânsito, elas optam por simplesmente fazer novas vias para acomodar os novos carros. Só que, obviamente, a conta não fecha: é impossível fazer faixas no mesmo ritmo em que as cidades ganham carros.

52% dos paulistanos trocariam o carro pelo ônibus “se fosse viável”. Por que então eles não trocam? Porque o transporte público é uma porcaria. Só que o maior motivo para o transporte público ser ruim é o excesso de carros (como 90% das vias estão tomadas pelos carros, não sobra espaço para um sistema público eficiente). Ou seja, chegamos a um daqueles paradoxos dignos de propaganda de biscoito: o transporte público é ruim porque todo mundo anda de carro e todo mundo anda de carro porque o transporte público é ruim.

Mudar essa situação exige, de cara, uma coisa que não temos em abundância: políticos visionários e corajosos, capazes de contrariar interesses de curto prazo para mudar sistemicamente as cidades. Ano que vem tem eleição para prefeito. É fundamental que procuremos gente assim. Muito provavelmente eles farão campanhas eleitorais pobres, já que os maiores financiadores de campanha municipal são construtoras, empreiteiras e incorporadoras, que adoram o trânsito do jeito que está. Portanto, se a propaganda na TV for muito bem produzida, desconfie.

Outra coisa de que precisamos é uma mudança cultural. Hoje, quase todos os motoristas se comportam como se eles fossem cidadãos privilegiados. Não dão passagem para ônibus (que transportam mais gente) nem para pedestres. Ficam irritados com pessoas atravessando à sua frente ou com ciclistas. Deveria ser o contrário. Um motorista deveria se comportar como alguém que está carregando um contrabaixo acústico numa loja de cristal: se movendo devagar e com um eterno sorriso simpático de quem pede desculpas pelo inconveniente que causa.

Foto: Nationaal Archief / Spaarnestad Photo, Eric Koch, The Commons, CC

A ideia é boa, há que se admitir. Invente um prêmio por voto popular e peça aos finalistas para eles mesmos pedirem votos. Assim o prêmio fica conhecido e todo mundo fala sobre ele. Eu, por exemplo, caí como um patinho.

Cheguei à final do tal prêmio. Votem em mim!

Em 2007, um pesquisador de engenharia de tráfego chamado Horácio Figueira fez uma pesquisa no trânsito de São Paulo. Ele saiu pelas ruas de carro, com um assistente sentado ao seu lado armado com um bloquinho de anotações. Aleatoriamente, Horácio escolhia um carro no trânsito e seguia-o de perto, observando seu comportamento. O assistente ia anotando cada infração de trânsito que o motorista cometia. Ao todo, 628 carros foram pesquisados, todos com placa de São Paulo. As conclusões são apavorantes.

Se a lei fosse cumprida em São Paulo, em média, um motorista paulistano levaria pouco menos de 8 minutos para acumular 20 pontos e perder sua carteira de motorista. Na média, um motorista paulistano leva 2 minutos para cometer uma infração que deveria ser multada.

O recordista da pesquisa foi um carro que Horácio só conseguiu seguir por 2:58 minutos (os pesquisadores ficaram para trás num sinal vermelho). Nesse tempo, o motorista conseguiu cometer 10 infrações. Isso teria valido a ele 50 pontos na carteira e R$ 1.234,36 a pagar em multas – em apenas 3 minutos. Horácio foi checar quantas multas esse motorista efetivamente recebeu: apenas uma ao longo de um ano inteiro, por estacionar em local proibido. Ou seja, a impunidade é praticamente total. A partir da amostra de sua pesquisa, Horácio calculou quantas infrações são cometidas na cidade, e depois comparou com o número de multas aplicadas. Resultado: segundo sua estimativa, apenas 1 em cada 17.409 infrações de trânsito é punida em São Paulo. “O motorista em São Paulo tem certeza absoluta de sua impunidade”, diz o pesquisador.

São números tão imensos que parecem exagerados. Mas, se você é cético, proponho um teste fácil de conferir. Saia de casa e procure uma faixa de pedestres sem semáforo. A cada vez que um pedestre se aproximar da beirada da rua, verifique se o motorista que vem vindo dá passagem. Aposto que o índice de motoristas que desrespeitam a lei ficará bem próximo de 100%, principalmente se for uma via de alta velocidade.

O condutor do veículo com a placa EBW-2413, flagrado enquanto colocava a vida de um ser humano em risco

Outro dia vi uma senhora idosa parada na beira de uma rua, onde havia faixa de pedestres e semáforo. Estava verde para ela, mas ela não se mexia. Perguntei por quê. Ela disse que preferia esperar fechar e abrir de novo, porque na última vez não tinha se movido rápido o suficiente e tinha medo de ser surpreendida pelo sinal vermelho no meio da rua. Tente se colocar na pele dessa senhora. Para ela, cada esquina da cidade é uma ameaça de morte. Andar três quarteirões significa escapar da morte três vezes, uma em cada esquina.

Carros são a arma que mais mata no Brasil – mais que revólver. Seu uso deveria ser fiscalizado com atenção e rigor. O condutor de um automóvel deveria se comportar com cuidado absoluto, como quem carrega um objeto muito perigoso no meio de uma multidão.

Não é o que acontece. Praticamente ninguém é multado por colocar a vida dos outros em risco. Quase metade das multas aplicadas são por rodízio ou estacionamento irregular. Só é multado quem atrapalha o fluxo de veículos, não quem ameaça a vida alheia. Pela minha experiência, a situação é igual ou pior em quase todas as grandes cidades brasileiras.

Definitivamente, a prefeitura tem responsabilidade nisso, pela incompetência escandalosa em aplicar a lei. Mas, como costuma acontecer com problemas sistêmicos, o responsável não é um só. É quase todo mundo. O primeiro passo para resolver um problema sistêmico é reconhecer a responsabilidade de cada um. A cada esquina, cada motorista tem uma escolha a fazer: ele pode decidir se se importa com a vida dos outros ou não. Ultimamente, o índice de motoristas paulistanos que opta pelo não gira em torno de 100%.