Você sabe que estamos vivendo um período excepcional da história quando o presidente em exercício dos Estados Unidos ganha o Prêmio Nobel da Paz.
Isso não é fato corriqueiro. A última vez que aconteceu foi em 1919, ao fim da Primeira Guerra Mundial. O vencedor foi Woodrow Wilson. Wilson já tinha então um belo currículo, digno de Nobel da Paz. Foi contra a guerra – não quis que seu país participasse quando ela estourou e só decidiu entrar quando ficou claro que a Alemanha não os deixaria em paz . Foi participante de destaque no Tratado de Versalhes, que pôs fim na guerra. Liderou a criação do primeiro organismo realmente transnacional do mundo, a Liga das Nações, avó da ONU. Um mundo terminava e outro começava e Wilson era um dos principais arquitetos do mundo novo. Quando foi escolhido pelo comitê norueguês, já era presidente americano fazia oito anos, e antes tinha sido governador de Nova Jersey por três e reitor da Universidade Princeton, uma das melhores do mundo, por nove.
Já Barack Obama…
Nove meses como presidente, depois de uma eleição ganha e outra perdida para o Congresso. Sua contribuição para a paz mundial foi… discursos? Por que não o Nobel de Literatura então? Um Grammy, talvez… Mas… o Nobel da Paz?
Claro que, mal Obama aceitou o prêmio com um discurso quase constrangido, comentaristas mundo afora se dedicaram a responder à mesma pergunta: foi merecido? Discussão bem pouco relevante, aliás, já que o vencedor do Nobel da Paz não é eleito pelos colunistas dos jornais, mas por um comitê de cinco noruegueses escolhidos pelo Parlamento de seu país. O comitê do Nobel, que tem a autoridade para conferir o prêmio, achou que Obama merecia. Logo, foi merecido.
Mais produtivo do que gastar saliva discutindo se Barack mereceu ou não é pensar numa outra pergunta, muito mais interessante:
O que isso significa?
Dá para responder de dois jeitos diferentes, e acho que as duas respostas são igualmente verdadeiras.
1. Não significa nada.
O Nobel é só um prêmio, só um símbolo, só um diploma e uma medalha, nem tão bonitos assim (acompanhados, é verdade, de um cheque de 1,4 milhão de dólares).
O Nobel não passa de uma boa ideia de marketing de um químico e industrial sueco chamado Alfred Nobel, o milionário inventor da dinamite. Numa bela manhã de 1888, Nobel acordou e leu no jornal seu próprio obituário. Era um erro do jornal. Quem tinha morrido foi Ludwig, irmão dele. Mas isso deu ao milionário, que nas horas vagas fabricava armamentos, um vislumbre de sua própria posteridade, e ele não gostou do que viu. O jornal o retratou como um mercador da morte, um gênio do mal, responsável por destruição e morte. Alfred, então, resolveu usar os poucos anos que lhe restavam para aplicar um botox em sua reputação. Surgiu assim o Prêmio Nobel.
Nobel era sueco, mas, por razões que ninguém sabe bem, resolveu incumbir o parlamento norueguês da tarefa de eleger os vencedores. Os deputados federais de lá recrutam cinco pessoas, que eles consideram capazes, para se reunirem todo ano e escolherem um vencedor entre os milhares e milhares de nomes que chegam de todas as partes do mundo. São apenas cinco pessoas, sujeitas aos equívocos, às paixões e às miopias de seu tempo e de seu país, uma desimportante monarquia nórdica. O fato de essas cinco pessoas terem se encontrado perto do círculo polar e escolhido o nome de Obama não significa nada. Não muda em nada os fatos da vida, as taxas de desemprego, os índices de crescimento, as balanças comerciais, as taxas de emissão de carbono, o resultado das guerras ou o das empresas. Eles poderiam ter escolhido Papai Noel ou o Biro-Biro que a diferença disso para o Universo seria mínima.
2. Significa tudo.
Obama, ao contrário de Wilson, não foi premiado por aquilo que ele fez. Ele foi premiado por aquilo que ele disse.
E o que ele disse? Muitas coisas, óbvio, sobre muitos assuntos. Mas, se eu for tentar resumir numa ideia, foi basicamente o seguinte: o problema – seja ele econômico, financeiro, comportamental, social, de saúde, ambiental, nuclear, religioso, cultural, tecnológico – é nosso. Cabe a nós assumir nossa responsabilidade e resolvê-lo (e ele disse isso tanto a americanos quanto a estrangeiros, como os muçulmanos do mundo).
Wilson criou uma obra e o Nobel coroou-a. Obama quer que nós ergamos a obra, e o Nobel lhe deu a coroa antes mesmo de haver um projeto pronto. Por quê?
Porque o mundo está em crise.
Não é uma crise econômica mundial, como dizem por aí. É muito mais do que isso. É uma crise de sistema. De modelo. O nosso parou de funcionar. Olhe para qualquer lado e isso fica óbvio. Nosso modelo de produção está esgotando recursos e superaquecendo o planeta, nosso modelo econômico privilegia fazer contas a produzir, nosso modelo financeiro é baseado em financiamentos de casas a quem não pode pagar, nosso modelo de gestão privilegia o ganho de curto prazo mesmo que inviabilize o negócio a médio prazo, nosso modelo de educação é excludente e ineficaz, nosso modelo de saúde fica cada vez mais proibitivamente caro, nosso modelo de cidade é agressivo e homicida, nosso modelo de vida torna a felicidade cada vez mais rara.
Ao premiar um presidente em começo de mandato, alguém cuja obra mal começou, os cinco noruegueses atestam que, em 2009, no meio dessa crise monumental, seria bobagem premiar alguém por seus feitos passados. Muito mais importante é o trabalho que está à nossa frente: o de construir um modelo novo, o de erguer um novo sistema.
É isso que o Nobel da Paz de 2009 significa: os noruegueses não elegeram Obama. Eles decidiram que, hoje, o futuro é mais importante do que o passado. Que, neste momento, mais do que em qualquer um desde que o Nobel foi criado, em 1901, é mais relevante apontar um caminho do que ter um currículo. E é mais relevante envolver as pessoas do que ter as respostas.