Um carro se movendo a 60 km/h ocupa mais de 120 metros quadrados da cidade, o equivalente a um bom apartamento. (Essa área é calculada somando o espaço ocupado pelo carro em si com a área logo à frente dele, pela qual ele vai passar nos próximos 2 segundos. Ou seja, quanto mais rápido, maior a área ocupada: a 100km/h passa dos 200 metros quadrados.)
Hoje, nas cidades brasileiras, os carros, que são privados, ocupam quase a totalidade das áreas públicas. “Em São Paulo, 90% das vias são tomados por carros particulares, que carregam apenas 50% das pessoas”, diz o engenheiro de tráfego Horácio Figueira, que já citei no post da semana passada, falando da falta de respeito à vida no trânsito.
Quem anda no trânsito das grandes cidades brasileiras tem a impressão de que a maioria das pessoas está dentro de carros. Ledo engano. Eles são minoria. Em São Paulo, por exemplo, mais da metade dos deslocamentos são feitos de transporte público, táxi, a pé, de moto ou de bicicleta. Mas os carros são uma minoria que ocupa tanto espaço que parece maioria. E é tratada pelo poder público como se fosse: quase todos os investimentos são feitos para carros, sobrando um trocadinho para a maior parte da população.
Um só ônibus carrega mais gente do que uma fila de um quarteirão e meio de carros. Precisa de 25 carros (que em média carregam 1,4 pessoa) para levar as mesmas 35 pessoas que cabem sentadas num ônibus. A consequência disso é fácil de calcular para qualquer um que se lembre das leis fundamentais da física: não cabe todo mundo.
Todos os dias, 7.000 novos carros chegam às ruas no Brasil. Como as prefeituras do país quase nunca têm coragem de mudar a lógica do trânsito, elas optam por simplesmente fazer novas vias para acomodar os novos carros. Só que, obviamente, a conta não fecha: é impossível fazer faixas no mesmo ritmo em que as cidades ganham carros.
52% dos paulistanos trocariam o carro pelo ônibus “se fosse viável”. Por que então eles não trocam? Porque o transporte público é uma porcaria. Só que o maior motivo para o transporte público ser ruim é o excesso de carros (como 90% das vias estão tomadas pelos carros, não sobra espaço para um sistema público eficiente). Ou seja, chegamos a um daqueles paradoxos dignos de propaganda de biscoito: o transporte público é ruim porque todo mundo anda de carro e todo mundo anda de carro porque o transporte público é ruim.
Mudar essa situação exige, de cara, uma coisa que não temos em abundância: políticos visionários e corajosos, capazes de contrariar interesses de curto prazo para mudar sistemicamente as cidades. Ano que vem tem eleição para prefeito. É fundamental que procuremos gente assim. Muito provavelmente eles farão campanhas eleitorais pobres, já que os maiores financiadores de campanha municipal são construtoras, empreiteiras e incorporadoras, que adoram o trânsito do jeito que está. Portanto, se a propaganda na TV for muito bem produzida, desconfie.
Outra coisa de que precisamos é uma mudança cultural. Hoje, quase todos os motoristas se comportam como se eles fossem cidadãos privilegiados. Não dão passagem para ônibus (que transportam mais gente) nem para pedestres. Ficam irritados com pessoas atravessando à sua frente ou com ciclistas. Deveria ser o contrário. Um motorista deveria se comportar como alguém que está carregando um contrabaixo acústico numa loja de cristal: se movendo devagar e com um eterno sorriso simpático de quem pede desculpas pelo inconveniente que causa.
Foto: Nationaal Archief / Spaarnestad Photo, Eric Koch, The Commons, CC