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Rios são veias. As artérias são correntes de ar, que carregam a água evaporada do mar até o continente e despejam tudo lá de cima. Cabe aos rios apanhar essa aguaceira e carregá-la de volta ao mar.

Boas veias são elásticas. Quando aumenta a pressão do sangue, elas relaxam, aumentando o espaço e permitindo um fluxo maior. Quando as veias enrijecem, perdem a capacidade de acomodar o excesso de pressão. Vasos sanguíneos rígidos são indício de morte iminente.

Mais ou menos a mesma regra vale para os rios. Bons rios são cercados por uma extensa área florestada, que alaga quando o fluxo aumenta, reduzindo a velocidade da água e alimentando um ecossistema bem rico. É o que se chama de várzea. O Brasil foi premiado pela natureza por rios de imenso volume d’água e, como consequência, algumas das maiores várzeas do mundo. Isso é a razão de nossa proverbial fertilidade e explica nossa aptidão para produzir comida, a base da nossa atual prosperidade.

Acontece que há um imenso equívoco no modo de ocupação do solo brasileiro. Construímos nossas casas nas várzeas e nas encostas íngremes.

A cidade de Palmares-PE, à beira do Rio Una, que a destruiu

Esse erro é cometido mais ou menos do mesmo jeito no país todo, o que explica por que regiões tão diversas como Santa Catarina, Alagoas e Pará tenham problemas semelhantes. Várzea ocupada é aquilo que os noticiários chamam de enchente. Encosta ocupada é mais conhecida como deslizamento. A questão central agora é desocupar essas regiões para que, no ano que vem, quando chover de novo, não haja ninguém mais morando lá.

E onde botamos as pessoas que vivem em várzeas e encostas? Para responder a essa pergunta, é importante antes entender por que essas regiões foram ocupadas. A resposta é complexa, mas pode ser simplificada em duas palavras: especulação imobiliária.

No Brasil, país de economia historicamente instável, sempre foi ótimo negócio ser dono de terra e ficar lá sentado nela sem fazer nada. O modelo de urbanização do país, que concentrava a economia no centro da cidade e ia se expandindo para fora garantia a certeza de que um terreno distante ontem viraria centro amanhã e seu valor se multiplicaria. Por conta disso, há na região central das maiores cidades brasileiras uma quantidade imensa de terrenos vazios ou subutilizados, só esperando valorização. Isso faz os preços de imóveis dispararem e os trabalhadores demandados pelas cidades acabam indo se espremer em várzeas e encostas, únicas terras baratas.

Isso é um problema para as cidades, porque força os trabalhadores a atravessar dezenas de quilômetros de asfalto para chegar ao trabalho, no centro. Por isso nosso trânsito é uma caca. Mas mora aí nossa grande oportunidade.

O que o Brasil precisa fazer agora é tirar as pessoas das encostas e várzeas e colocá-las nesses pedaços vazios do centro da cidade (a última coisa que queremos é colocar as pessoas ainda mais longe, aumentando ainda mais o trânsito e os custos do transporte público). Isso trará várias vantagens. Permitirá às cidades fazerem grandes parques lineares em volta dos rios, onde hoje há avenidas, com instalações esportivas e ciclovias. Levará trabalhadores para as regiões centrais, diminuindo a pressão no transporte público e no trânsito. Embelezará as cidades, criará oportunidades econômicas, moverá a economia e fará o Brasil rodar.

Mas como fazer os especuladores colaborarem? (Já que a solução depende de eles pararem de especular.) O remédio tem três doses: educação, fiscalização e punição. Primeiro ensina-se os proprietários a adaptarem sua situação para que os terrenos vazios parem de prejudicar a cidade e sejam ocupados. Dá-se a eles um prazo para se adaptar – e prazos curtos funcionam muito melhor do que prazos longos. Quem não se adapta, paga impostos cada vez mais altos ou é desapropriado.

Precisamos começar a fazer isso rápido, assim que as chuvas pararem. Mas o planejamento precisa ser de longuíssimo prazo, coisa de 30 anos, para que as obras de 2011 não sejam apenas a maquiagem de sempre (piscinões, muros, dragas e aumentos de calha), mas o primeiro passo de uma reforma profunda no sistema de ocupação do Brasil.

Foto: Cia de Foto / !sso Não É Normal

Um exemplo de como é hoje: o mapa mostra os empregos formais na indústria, comércio e serviços em São Paulo, fortemente concentrados no centro

Já este mapa mostra o crescimento populacional na cidade: todo ele nas periferias

Nasci e cresci lá no centro econômico do Brasil. Esta semana, um trabalho me trouxe à extrema periferia do país: a floresta amazônica. Vou passar três semanas viajando por aqui e contando pelo blog das coisas que vejo pela janela, das pessoas que encontro no caminho.

Vim para cá participar da organização de uma conferência independente, o TEDxAmazônia, cujo objetivo era refletir sobre ideias que tornem a vida melhor aqui neste planeta (entenda o que é aqui). Fiz parte do grupo de curadoria do evento. Convidamos para palestrar um monte de gente do centro econômico do mundo. Nova-iorquinos, londrinos, alemães, californianos e nórdicos aceitaram empolgados o convite (apesar da nossa política de não pagar cachê para ninguém).

A conferência durou dois dias e teve um pouco mais de 50 palestrantes. Não vou nem tentar resumir aqui o que aconteceu lá – eu nem seria capaz, de tão emocionalmente envolvido que eu estava na história. Mas, ao longo do fim de semana, uma certeza foi me dominando:

Não, aqui não é a periferia do Brasil.

Não, a Amazônia não é o lugar onde nove periferias problemáticas (Bolívia, Colômbia, Venezuela, Peru, Equador, as três Guianas, Brasil) se encontram. Aqui é o centro.

É o centro climático. É o termostato que regula a temperatura do planeta inteiro. Quando a concentração de carbono na atmosfera terrestre aumenta e a temperatura sobe, a floresta, alimentada de calor e gás carbônico, cresce. E, ao crescer, captura carbono e emite oxigênio, esfriando o mundo (um efeito que obviamente anda meio prejudicado pela nossa mania de desmatar).

É o centro hídrico. É uma bomba de ar quente que faz circular uma parte enorme da umidade da Terra. Não fosse a floresta, a América do Sul seria tão desértica quanto a África e não daria para se plantar nada em Goiás ou no Mato Grosso, não daria para se viver em São Paulo, no Rio ou em Buenos Aires.

É o centro energético. É aqui que fica a grande usina do mundo: a floresta, que captura a energia do sol e produz com ela quase toda a matéria orgânica do planeta. É essa energia que move nossa sociedade.

É o centro de biodiversidade. É o grande laboratório de pesquisa e desenvolvimento da evolução, gerando uma quantidade astronômica de espécies. Numa só árvore há mais insetos do que a maioria de nós vai ter chance de ver ao longo da vida. Em 1 hectare, o tamanho de um campo de futebol, há mais espécies de árvore do que na Europa toda.

E é sim o centro econômico do Planeta Terra, não São Paulo ou Londres ou Nova York. Num mundo em que 50% do PIB é extrair e vender recursos naturais, o centro econômico não é onde estão os bancos – é onde estão os recursos naturais. São Paulo, Londres e Nova York é onde estão os atravessadores, mas a riqueza do mundo provem daqui. E vai-se embora sem deixar rastro, para irrigar o sistema econômico mundial.

A Amazônia é o centro do futuro do mundo. É onde estão as respostas para todas as nossas questões. Isso ficou claro durante a conferência, enquanto os palestrantes subiam ao palco, um após o outro – o economista, o designer tecnológico do Vale do Silício, o pensador da educação, o químico industrial alemão, a evolucionista, o ativista digital, a designer de moda, a executiva da indústria de cosméticos, os pesquisadores de felicidade da Finlândia, o ativista urbano.

Ao final do domingo, eu estava literalmente esgotado, física e emocionalmente. Foi intenso. Passei a segunda-feira balançando numa rede, com febre, me recuperando.

Por sorte, fui fazer isso na floresta. Eu estava acompanhado de um guia, o Samuel, etnicamente índio, mas que nasceu na cultura dos brancos. Seu pai, um homem culto e inteligente que fala línguas e toca violino, abandonou a tribo antes que o Samuel nascesse, em busca de uma vida melhor. Aos 13 anos, com a curiosidade alimentada pela convivência com o avô, que falava uma língua misteriosa, Samuel disse aos pais que iria tirar um mês de férias e entrou no mato perto da divisa com a Venezuela, na periferia da periferia. Bem lá no centro dela. Achou uma tribo, disse ao chefe que queria aprender a cultura deles e só voltou para casa, todo pintado e transformado, dois anos depois.

O Samuel e um outro guia incrível, o caboclo Manuel, nos ensinaram o que puderam sobre a floresta. Comemos cabeça de saúva, com gosto de erva cidreira e pimenta. Vimos como se faz corda, com a mesma fibra que está nas pastilhas de freio dos carros mais caros. Mastigamos cascas de árvore, raízes, sementes e seiva, e reconhecemos neles o gosto e o cheiro de um monte de alimentos, medicamentos e cosméticos conhecidos nossos. Ouvimos centenas de histórias que um dia ainda vou contar aqui.

É tanta riqueza.

É tanto potencial.

É o centro do mundo.

Depois dessa experiência, minha vida em São Paulo parece tão periférica.

*

(Quem quiser acompanhar o que aconteceu no TEDxAmazônia pode assistir às palestras no site. Vão subir uma por semana, ao longo de um ano inteiro).